terça-feira, 3 de agosto de 2010

RAÇA

Prof. Dr. Kabengele Munanga (USP)
Etmologicamente, o conceito de raça veio do italiano razza, que por sua vez veio do
latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie. Na história das ciências naturais, o
conceito de raça foi primeiramente usado na Zoologia e na Botânica para classificar as
espécies animais e vegetais. Foi neste sentido que o naturalista sueco, Carl Von Linné
conhecido em Português como Lineu (1707-1778), o uso para classificar as plantas em 24
raças ou classes, classificação hoje inteiramente abandonada.
Como a maioria dos conceitos, o de raça tem seu campo semântico e uma dimensão
temporal e especial. No latim medieval, o conceito de raça passou a designar a
descendência, a linhagem, ou seja, um grupo de pessoa que têm um ancestral comum e que,
ipso facto, possuem algumas características físicas em comum. Em 1684, o francês
François Bernier emprega o termo no sentido moderno da palavra, para classificar a
diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, denominados raças. Nos séculos
XVI-XVII, o conceito de raça passa efetivamente a atuar nas relações entre classes sociais
da França da época, pois utilizado pela nobreza local que si identificava com os Francos, de
origem germânica em oposição ao Gauleses, população local identificada com a Plebe. Não
apenas os Francos se considerava como uma raça distinta dos Gauleses, mais do que isso,
eles se consideravam dotados de sangue “puro”, insinuando suas habilidades especiais e
aptidões naturais para dirigir, administrar e dominar os Gauleses, que segundo pensavam,
podiam até ser escravizados. Percebe-se como o conceitos de raças “puras” foi transportado
da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre
classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvessem diferenças morfo-biológicas
notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes.
As descobertas do século XV colocam em dúvida o conceito de humanidade até
então conhecida nos limites da civillização ocidental. Que são esses recém descobertos
(ameríndios, negros, melanésios, etc.)? São bestas ou são seres humanos como “nós”,
europeus? Até o fim do século XVII, a explicação dos “outros” passava pela Teologia e
pela Escritura, que tinham o monopólio da razão e da explicação. A península ibérica
constitui nos séculos XVI-XVII o palco principal dos debates sobre esse assunto. Para
aceitar a humanidade dos “outros”, era preciso provar que são também descendentes do
Adão, prova parcialmente fornecida pelo mito dos Reis Magos, cuja imagem exibe
personagens representes das três raças, sendo Baltazar, o mais escuro de todos considerado
como representante da raça negra. Mas o índio permanecia ainda um incógnito, pois não
incluído entre os três personagens representando semitas, brancos e negros , até que os
teólogos encontraram argumentos derivados da própria bíblia para demostrar que ele
também era descendente do Adão.
No século XVIII, batizado século das luzes, isto é, da racionalidade, os filósofos
iluministas contestam o monopólio do conhecimento e da explicação concentrado nas mãos
da Igreja e os poderes dos príncipes. Eles se recusam a aceitar uma explicação cíclica da
história da humanidade fundamentada na idade de “ouro”, para buscar uma explicação
baseada na razão transparente e universal e na história cumulativa e linear. Eles recolocam
em debate a questão de saber que eram esses outros, recém descobertos. Assim laçam mão
do conceito de raça já existente nas ciências naturais para nomear esses outros que se
integram à antiga humanidade como raças diferentes, abrindo o caminho ao nascimento de
uma nova disciplina chamada História Natural da Humanidade, transformada mais tarde em
Biologia e Antropologia Física.
Por que então, classificar a diversidade humana em raças diferentes? A
variabilidade humana é um fato empírico incontestável que, como tal merece uma
explicação científica. Os conceitos e as classificações servem de ferramentas para
operacionalizar o pensamento. É neste sentido que o conceito de raça e a classificação da
diversidade humana em raças teriam servido. Infelizmente, desembocaram numa operação
de hierarquização que pavimentou o caminho do racialismo. A classificação é um dado da
unidade do espírito humana. Todos nós já brincamos um dia, classificando nossos objetos
em classes ou categorias, de acordo com alguns critérios de semelhança e diferença.
Imagine-se o que aconteceria numa biblioteca do tamanho da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro. Sem classificação por autor e ou por assunto, seria muito complicado a busca de
um documento. Com a preocupação de facilitar a busca e a compreensão, parece que o ser
humano desde que começou a observar desenvolveu a aptidão cognitiva de classificação. A
primeira tentativa consiste em distinguir os seres animados dos inanimados; os minerais dos
vegetais e os vegetais dos animais. Entre os animais, não há como confundir um elefante
com um leopardo, uma cobra com uma tartaruga. São todos animais, mas porém diferentes.
Na história da ciência, a classificação dos seres vivos começa na Zoologia e na
Botânica. Era importante encontrar categorias maiores por sua vez subdivididas em
categorias menores e subcategorias e assim adiante. Os termos para designar as categorias
são como todos os fenômenos lingüísticos convencionais e arbitrários. Assim as principais
categorias foram as divisões filo e sub-filo, a classe, a ordem e a espécie. Como homens,
pertencemos ao filo dos cordados, ao sub-filo dos vertebrados (como os peixes), à classe
dos mamíferos (como as baleias), à ordem dos primatas (como os grandes símios) e à
espécie humana (homo sapiens) como todos os homens e todas as mulheres que habitam
nossa galáxia. Somos espécie humana porque formamos um conjunto de seres, homens e
mulheres capazes de constituir casais fecundos, isto é, capazes de procriar, de gerar outros
machos e outras fêmeas. Sem a classificação, não é possível falar de milhões de espécies de
animais do universo conhecido. Apenas, no seio da espécie homo-sapiens (homo sábio), a
que pertencemos, somos hoje cerca de 6 bilhões de indivíduos. Nessa enorme diversidade
humana que somos, da mesma maneira que distinguimos o babuíno do orangotango, não
podemos confundir o chinês com o pigmeu da África, o norueguês com o senegalês, etc.
Em qualquer operação de classificação, é preciso primeiramente estabelecer alguns
critérios objetivos com base na diferença e semelhança. No século XVIII, a cor da pele foi
considerada como um critério fundamental e divisor d’água entre as chamadas raças. Por
isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estancas que resistem até hoje no
imaginário coletiva e na terminologia científica: raça branca, negra e amarela. Ora, a cor da
pele é definida pela concentração da melanina. É justamente o degrau dessa concentração
que define a cor da pele, dos olhos e do cabelo. A chamada raça branca tem menos
concentração de melanina, o que define a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a
negra que concentra mais melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais escuros e a
amarela numa posição intermediária que define a sua cor de pele que por aproximação é
dita amarela Ora, a cor da pele resultante do grau de concentração da melanina, substância
que possuímos todos, é um critério relativamente artificial. Apenas menos de 1% dos genes
que constituem o patrimônio genético de um indivíduo são implicados na transmissão da
cor da pele, dos olhos e cabelos. Os negros da África e os autóctones da Austrália possuem
pele escura por causa da concentração da melanina. Porém, nem por isso eles são
geneticamente parentes próximos. Da mesma maneira que os pigmeus da África e da Ásia
não constituem o mesmo grupo biológico apesar da pequena estatura que eles têm em
comum.
No século XIX, acrescentou-se ao critério da cor outros critérios morfológicos como
a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do formato do crânio, o angulo facial, etc. para
aperfeiçoar a classificação. O crânio alongado, dito dolicocéfalo, por exemplo, era tido
como característica dos brancos “nórdicos”, enquanto o crânio arredondado, braquicéfalo,
era considerado como característica física dos negros e amarelos. Porém, em 1912, o
antropólogo Franz Boas observara nos Estados Unidos que o crânio dos filhos de imigrados
não brancos, por definição braquicéfalos, apresentavam tendência em alongar-se. O que
tornava a forma do crânio uma característica dependendo mais da influência do meio, do
que dos fatores raciais.
No século XX, descobriu-se graças aos progressos da Genética Humana, que
haviam no sangue critérios químicos mais determinantes par consagrar definitivamente a
divisão da humanidade em raças estancas. Grupos de sangue, certas doenças hereditárias e
outros fatores na hemoglobina eram encontrados com mais freqüência e incidência em
algumas raças do que em outras, podendo configurar o que os próprios geneticistas
chamaram de marcadores genéticas. O cruzamento de todos os critérios possíveis ( o
critério da cor da pele, os critérios morfológicos e químicos) deu origem a dezenas de raças,
sub-raças e sub-sub-raças. As pesquisas comparativas levaram também à conclusão de que
os patrimônios genéticos de dois indivíduos pertencentes à uma mesma raça podem ser
mais distantes que os pertencentes à raças diferentes; um marcador genético característico
de uma raça, pode, embora com menos incidência ser encontrado em outra raça. Assim, um
senegalês pode, geneticamente, ser mais próximo de um norueguês e mais distante de um
congolês, da mesma maneira que raros casos de anemia falciforme podem ser encontrados
na Europa, etc. Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na
própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos
desse campo de conhecimento chegaram a conclusão de que a raça não é uma realidade
biológica, mas sim apenas um conceito alias cientificamente inoperante para explicar a
diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente,
as raças não existem.
A invalidação científica do conceito de raça não significa que todos os indivíduos
ou todas as populações sejam geneticamente semelhantes. Os patrimônios genéticos são
diferentes, mas essas diferenças não são suficientes para classificá-las em raças. O maior
problema não está nem na classificação como tal, nem na inoperacionalidade científica do
conceito de raça. Se os naturalistas dos séculos XVIII-XIX tivessem limitado seus trabalhos
somente à classificação dos grupos humanos em função das características físicas, eles não
teriam certamente causado nenhum problema à humanidade. Suas classificações teriam
sido mantidas ou rejeitadas como sempre aconteceu na história do conhecimento científico.
Infelizmente, desde o início, eles se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer
uma escala de valores entre as chamadas raças. O fizeram erigindo uma relação intrínseca
entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais,
intelectuais e culturais. Assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados
coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características
físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a
forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos,
mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e conseqüentemente mais aptos para
dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e
conseqüentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta,
menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação.
A classificação da humanidade em raças hierarquizadas desembocou numa teoria
pseudo-científica, a raciologia, que ganhou muito espaço no início do século XX. Na
realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do
que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de
dominação racial do que como explicação da variabilidade humana. Gradativamente, os
conteúdos dessa doutrina chamada ciência, começaram a sair dos círculos intelectuais e
acadêmicos para se difundir no tecido social das populações ocidentais dominantes. Depois
foram recuperados pelos nacionalismos nascentes como o nazismo para legitimar as
exterminações que causaram à humanidade durante a Segunda guerra mundial.
Podemos observa que o conceito de raça tal como o empregamos hoje , nada tem de
biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele
esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre
apresentada como categoria biológica, isto é natural, é de fato uma categoria etnosemântica.
De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela
estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de
negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na
África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico,
político-ideológico e não biológico. Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de
um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletivos de
diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a
partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a
partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se mantêm os racismos
populares.
Alguns biólogos anti-racistas chegaram até sugerir que o conceito de raça fosse
banido dos dicionários e dos textos científicos. No entanto, o conceito persiste tanto no uso
popular como em trabalhos e estudos produzidos na área das ciências sociais. Estes, embora
concordem com as conclusões da atual Biologia Humana sobre a inexistência científica da
raça e a inoperacionalidade do próprio conceito, eles justificam o uso do conceito como
realidade social e política, considerando a raça como uma construção sociológica e uma
categoria social de dominação e de exclusão.
A questão mais importante do ponto de vista científico não é apenas observar e
estabelecer tipologias, mas sim principalmente encontrar a explicação da diversidade
humana. Antes de Darwin e seus predecessores (Lamarck), a representação do mundo tido
como criado, era estática e imóvel. As variações entre os organismos tinham uma
explicação metafísica. Mas Darwin demonstrou a partir dos princípios da seleção natural (A
Evolução da Espécie,1859), que os organismos vivos evoluíram gradativamente a partir de
uma origem comum e se diversificaram no tempo e no espaço, adaptando-se a meios hostis,
diversos e em perpétua transformação. A variação dos caracteres genéticos, fisiológicos,
morfológicos e comportamentais hoje observados, tanto entre as populações vegetais e
animais como humanas, correspondem em grande medida a um fenômeno adaptativo.
Exemplos: uma pele escura concentra mais melanina que uma pele clara, pois protege
contra a infiltração dos raios ultravioletas nos países tropicais; uma pele clara é necessária
nos países frios, pois auxilia na síntese da vitamina D. Graças aos progressos da ciência e
da tecnologia, a adaptação ao meio ambiente não precisa mais hoje de mutações genéticas
necessárias no longínquo passado de nossos antepassados.
A diversidade genética é absolutamente indispensável à sobrevivência da espécie
humana. Cada indivíduo humano é o único e se distingue de todos os indivíduos passados,
presentes e futuros, não apenas no plano morfológico, imonológico e fisiológico, mas
também no plano dos comportamentos. É absurdo pensar que os caracteres adaptativos
sejam no absoluto “melhores” ou “menos bons”, “superiores” ou “inferiores” que outros.
Uma sociedade que deseja maximizar as vantagens da diversidade genética de seus
membros deve ser igualitária, isto é, oferecer aos diferentes indivíduos a possibilidade de
escolher entre caminhos, meios e modos de vida diversos, de acordo com as disposições
naturais de cada um. A igualdade supõe também o respeito do indivíduo naquilo que tem de
único, como a diversidade étnica e cultural e o reconhecimento do direito que tem toda
pessoa e toda cultura de cultivar sua especificidade, pois fazendo isso, elas contribuem a
enriquecer a diversidade cultural geral da humanidade.

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