Do princípio do século XX até a atualidade, a compreensão filosófica do psiquismo humano vem sendo profundamente abalada pelo advento de uma ciência especificamente dedicada à pesquisa do cérebro, a chamada neurociência. De maneira geral, o principal objetivo da neurociência é fornecer uma descrição tão completa quanto possível da organização cerebral, sua estrutura e suas diversas funções. Hoje os neurocientistas já têm condições de localizar no cérebro as áreas responsáveis por diversas capacidades mentais, como o pensamento racional, as emoções e os sentimentos. Como ilustra a figura abaixo, instrumentos sofisticados como os usados para obter imagens do cérebro por ressonância magnética, permitem observar, com detalhes, a atividade cerebral. Assim, os neurocientistas não estão mais restritos às limitações impostas pela pesquisa do cérebro sem vida, retirado da caixa craniana. Por meio de neuro-imagem, aqui ilustrada, podem testar suas hipóteses acompanhando em tempo real as reações cerebrais.
Embora seja uma ciência nova, as descobertas da neurociência não deixam dúvidas quanto à dependência de nossa atividade psíquica (sensibilidade, emoções, capacidade cognitiva, etc) em relação ao cérebro, ou seja, ao conjunto neuronal. Já sabemos que determinadas substâncias podem nos tranqüilizar ou nos deixar eufóricos ao interferirem na atividade cerebral. A degeneração de determinadas partes do tecido cerebral destrói nossa capacidade de raciocínio. Nossa consciência se mostra vulnerável à ação de determinados anestésicos e assim por diante. (Ver exemplo desse ponto no Roteiro de Atividade III, Corpo e psiquismo).
Ora, diante do surgimento da neurociência e o seu desenvolvimento acelerado, como fica a compreensão filosófica do psiquismo humano? Recentemente, um novo ramo da filosofia se dedica a compreender o que é a mente humana – a chamada “filosofia da mente”. A maior parte de seus representantes procura levar a sério as descobertas da neurociência. Alguns entendem que a neurociência veio substituir o tratamento filosófico dos fenômenos mentais. A idéia aqui é que a neurociência oferece todos os instrumentos necessários para o entendimento da mente. Já outros afirmam que a neurociência tem limites, de tal maneira que há um conjunto de fenômenos mentais que não lhe são acessíveis. Vejamos, em primeiro lugar, algumas posições amplamente favoráveis à neurociência como explicação satisfatória do que seja a mente humana.
O materialismo reducionista (A teoria da identidade)
A teoria da identidade, formulada por U.T. Place, J.J. Smart e Herbert Feigl afirma que os estados mentais são simplesmente estados físicos do cérebro. Nesse sentido podemos dizer que a teoria da identidade adota um monismo materialista. Ou seja, não existe uma substância imaterial, além do cérebro, que possa ser responsável por nossa vida mental (que Descartes, por exemplo, chamava de alma).
Para essa corrente, o fato de um mesmo fenômeno poder ser descrito de várias maneiras não significa que cada descrição corresponda a uma realidade diferente. É verdade que existem várias maneiras de se descrever um fenômeno: um relâmpago, por exemplo, pode ser descrito como uma forte e bem desenhada luminosidade no céu, ou como algo que provoca medo, ou como uma descarga de elétrons. No entanto, não se quer afirmar com isso que haja três fenômenos, mas apenas um.
Do mesmo modo nossos pensamentos, sonhos e emoções podem ser descritos de diversas maneiras. Um pensamento, por exemplo, pode ser descrito como engraçado ou como uma atividade de descarga elétrica das conexões dos neurônios em alguma parte do nosso cérebro. Mas isto não significa que existam dois fenômenos.
O ponto fundamental para os defensores da teoria da identidade é que há uma clara superioridade da descrição científica com relação às descrições que as pessoas comumente dão aos fenômenos mentais. Assim, eles propõem uma redução do antigo vocabulário que usamos para descrever os estados mentais ao vocabulário proposto pela neurociência – daí serem chamados de materialistas reducionistas. Segundo eles, podemos e devemos entender estados mentais (intenções, desejos ou pensamentos) como estados físicos do cérebro. Outros exemplos de redução seriam os seguintes: a depressão pode ser totalmente compreendida como ausência de serotonina no cérebro, a ansiedade como uma descarga de adrenalina, etc.
A posição reducionista é assim expressa pelo neurocientista Antônio Damásio:
“Os neurônios, organizados em circuitos, comunicam-se por meio de reações eletroquímicas. O padrão ou o desenho dos circuitos é o que permite a construção de todas as imagens. Isso vale tanto para o que se passa no mundo exterior – visões ou sons, por exemplo – como para imagens interiores, produzidas e transformadas por um estado emocional. São elas que constituem aquilo que chamamos de espírito humano”. (Revista Veja, 13 de janeiro de 2010, p. 82).
O materialismo eliminativista
O materialismo eliminativista é defendido, entre outros, pelo filósofo Paul Churchland. De certa forma, essa posição se origina da teoria da identidade, uma vez que também afirma o monismo materialista. Entretanto, ela difere dessa teoria na medida em que adere totalmente ao domínio da neurociência. Como vimos, a teoria da identidade ainda se compromete com a tarefa de traduzir o vocabulário antigo em linguagem científica nova.
No entanto, as explicações comuns muitas vezes distorcem a natureza de nossa atividade mental. Devemos, então, eliminar este modo coloquial e impreciso de se referir aos estados mentais e substituí-lo por termos científicos.
Vejamos o exemplo das bruxas dado por Churchland:
“A psicose é um distúrbio razoavelmente comum entre os seres humanos, e, séculos atrás, suas vítimas eram regularmente vistas como casos de possessão demoníaca. A existência de bruxas não era uma questão de controvérsia. Elas eram vistas ocasionalmente, em cidades ou aldeias, envolvidas em comportamentos incoerentes, paranóicos, ou mesmo homicidas. Por fim, chegamos à conclusão que o conceito de bruxa é um elemento de um arcabouço conceitual que interpreta de modo tão absolutamente incorreto os fenômenos aos quais ele era regularmente aplicado que o emprego literal dessa noção deveria ser permanentemente eliminado.”
(CHURCHLAND, Paul. Matéria e consciência. Trad. de Maria Clara Cescato. São Paulo, Editora UNESP, 2004, p. 81)
Dessa forma, o conceito “bruxa” e tudo que ele implica foi eliminado do nosso vocabulário (a não ser, é claro, nas estórias ficcionais) tendo em vista conceitos que esclarecem o fenômeno da psicose de forma correta. Quanto a esse problema, podemos notar também que muitos fenômenos mentais que nos são muito familiares não parecem ser satisfatoriamente esclarecidos pelas explicações comuns que as pessoas nos oferecem. Como afirma Churchland, sem os esclarecimentos da neurociência ficamos simplesmente sem compreender de forma precisa e correta fenômenos como o sono, a memória e o raciocínio, para citar alguns exemplos.
Daí podemos extrair uma tese importante para os eliminativistas: a chamada psicologia popular, ou o modo comum pelo qual as pessoas entendem os fenômenos mentais, parece ser um estágio de nossa autocompreensão que a neurociência poderá um dia superar. Assim, talvez não precisaremos mais falar de intenções, desejos ou pensamentos, mas apenas de partes de nosso cérebro. O materialista eliminativista aposta que, com o desenvolvimento da neurociência, os conceitos neurocientíficos poderão adentrar o cotidiano das pessoas, substituindo completamente o vocabulário comum.
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