quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 4
A existência ética
Senso moral e consciência moral
Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de
luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de
pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos
piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando
vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos
responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a
fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.
Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção
forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que,
depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo
e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso
moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas
palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo,
mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e
dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais
sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.
Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres
humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio,
torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente
foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece
impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras
pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às
custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso
moral.
Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como
situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida,
com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a
máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no
sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-
la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que
fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda
não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje
apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se
responsabilizar plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho.
Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas
famílias (se as tiverem).
Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar
o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para
sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia
não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com
ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para
nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente,
recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa
irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá
sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego,
mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com
fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela
correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido.
Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará
traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo
com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode
ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou
deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela
decisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e,
conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve
falar ou calar?
Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e
pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas
dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a
fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará
um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá
silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para
a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao
homicídio? Que fazer?
Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre
em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas
nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois
exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os
outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências
delas, porque somos responsáveis por nossas opções.
Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral
referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade,
generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha,
culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que
conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os
conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais
profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as
ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal,
também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de
afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes
conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.
O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções,
decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem
respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem
como parte de nossa vida intersubjetiva.

Juízo de fato e de valor

Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento
constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e
avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.
Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são.
Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de
fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre
coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na
religião.
Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos,
sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus,
desejáveis ou indesejáveis.
Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que
determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos
comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações
segundo o critério do correto e do incorreto.
Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos
éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos
devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também
que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos
do ponto de vista moral.
Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida
cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e
negativos que devem respeitar ou detestar.
Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a
Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e
processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de
nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos
necessários podemos constatar e explicar.
Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si
mesmos e suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos,
intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores.
Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos
com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma
relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de
contemplação.
Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral
e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles e neles,
como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para
garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de
geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da
existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser
criação histórico-cultural.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

ESCOLA ESTADUAL DEPUTADO RENATO AZEREDO
DISCIPLINA: FILOSOFIA
PROFESSOR: RODRIGO SOUZA

Genealogia dos valores                                                               Rodrigo dos Santos Manzano
Na ótica nietzschiana, a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem perspectivas que os engendram; estas, por sua vez, ao criá-los, supõem um valor que as norteia. É nisso que consiste o procedimento genealógico. A genealogia comporta assim dois movimentos inseparáveis: de um lado, relacionar os valores com perspectivas avaliadoras e, de outro, relacionar estas perspectivas avaliadoras com um valor.
É preciso, pois, encontrar um valor ou, se se quiser, um critério de avaliação que não tenha sido criado, ele mesmo, por uma perspectiva avaliadora. Em outras palavras: é preciso adotar um critério de avaliação que não possa ser avaliado. E o único critério que se impõe por si mesmo é a vida. “É preciso estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse – de que o valor da vida não pode ser avaliado”, afirma Nietzsche. “Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão” (Crepúsculo dos Ídolos, “O Problema de Sócrates”, parágrafo 2).
Moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida ao exame genealógico, deve passar pelo crivo da vida. Fazer qualquer apreciação passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se contribui para favorecê-la ou obstruí-la; submeter ideias ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se são signos de plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente ou declinante.
“Viver”, define Nietzsche em Para Além de Bem e Mal, “é essencialmente apropriação, violação, dominação do que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza, imposição da própria forma, incorporação e pelo menos, no mais clemente dos casos, exploração” (parágrafo 259). A partir daí, compreende-se que ele encare a moral cristã como negação da vida. E, se tivesse sentido falar em bem e mal, consideraria bom tudo o que contribui para a expansão e exuberância da vida e mau tudo o que provém da fraqueza.
Transvaloração dos valores
Mas ao lado da vertente corrosiva de sua obra, Nietzsche apresenta-nos outra, construtiva. Entendendo que o filósofo deve ser o “médico da civilização”, a ele atribui a tarefa de “resolver o problema do valor”, “determinar a hierarquia dos valores”. A filosofia tem de mergulhar fundo na própria época para ultrapassá-la; ela deve visar o que está por vir, tendo em mira um objetivo preciso: a criação de valores.
É por isso que Nietzsche concebe sua obra como a tentativa de retomar as rédeas do destino da humanidade. Sócrates representou um marco na visão grega do mundo, substituindo o homem trágico pelo teórico; e Cristo, um marco no pensamento ocidental, substituindo o pagão pelo novo homem. Mas, com ele, a negação deste mundo em que vivemos aqui e agora “se fez carne e gênio”. Inimigo implacável do cristianismo, Nietzsche nele encontrará um adversário que julga à sua altura. Conta inverter o sentido que ele procurou dar à existência humana; espera subvertê-lo. E, para inaugurar esta nova era, tem de realizar a transvaloração de todos os valores.
Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores até então foram engendrados. Aqui, Nietzsche espera realizar obra análoga à dos iconoclastas: derrubar ídolos, demolir alicerces, dinamitar fundamentos. É deste ponto de vista que critica a metafísica e a religião cristã.
Traço essencial de nossa cultura, o dualismo de mundos foi invenção do pensar metafísico e fabulação do cristianismo. Com Sócrates, teve início a ruptura da unidade entre homem e mundo – e a filosofia converteu-se, antes de mais nada, em antropologia. Com o judaísmo, houve o despovoamento de um mundo que estava cheio de deuses – e a religião tornou-se, acima de tudo, um “monótono-teísmo”. Com o cristianismo, propagou-se a mentira da vida depois da morte e do chamado reino de Deus. Desvalorizando este mundo em nome de um outro, essencial, imutável e eterno, a cultura socrático-judaico-cristã é niilista desde a base.
Transvalorar é, também, inverter os valores. Aqui, Nietzsche conta realizar obra análoga à dos alquimistas: transformar em ouro o que até então foi odiado, temido e desprezado pela humanidade. É deste ângulo de visão que denuncia o idealismo e reivindica a adesão a esta vida tal como a vivemos, a aceitação deste mundo tal como o encontramos aqui e agora.
É chegada “a hora do grande desprezo”; é chegado o momento de questionar tudo o que até então o ser humano venerou e, pelo mesmo movimento, afirmar tudo o que até então ele negou. Só assim será possível revelar o que por trás dos valores instituídos se esconde e trazer à luz o que eles mesmos escondem. Se outrora o maior delito era o cometido contra Deus, agora mais sacrílego ainda é delinquir contra a Terra. Se outrora se prezava acima de tudo a vida depois da morte, agora é urgente entender que eterna é esta vida. Se outrora a alma mostrava descaso pelo corpo, agora é preciso que o corpo torne evidente o caráter fictício da alma.
Transvalorar é, ainda, criar novos valores. Aqui, Nietzsche pretende realizar obra análoga à dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores. É desta perspectiva que concebe a filosofia.
Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, “o sem-Deus”, conta reinscrever o ser humano na natureza. Suprimindo o além, Nietzsche, “o anticristo”, quer estabelecer uma nova aliança entre homem e mundo. Naturalizar os valores morais, é nisso que consiste seu empreendimento filosófico.
É bem verdade que, em momento algum, o autor de Assim Falava Zaratustra pregará um tipo de comportamento determinado ou imporá um estilo de vida específico; ele jamais pretenderá dizer o que se deve fazer. Sublinhando o caráter singular e irrecuperável de cada ação, Nietzsche insistirá em fazer ver que nosso modo de agir tem doravante de nortear-se por valores em consonância com a Terra, com a vida, com o corpo.
E, para tanto, ele se empenhará tanto na crítica corrosiva dos valores quanto na criação de novos valores. Genealogia e transvaloração aparecem assim como as duas faces da mesma moeda. Afinal, “quem quiser ser um criador no bem e no mal, esse tem de ser um aniquilador e destruidor de valores”.


Uma ética nietzschiana
Dossiê: Genealogia e transvaloração dos valores morais para naturalizá-los

Scarlett Marton
Ousado, irreverente, rebelde, é sobretudo dessa maneira que Nietzsche é conhecido entre nós. Filosofando a golpes de martelo, este pensador, um dos mais controvertidos de nosso tempo, não hesita em seus escritos em desafiar normas. Tanto é que ele vem questionar nossa maneira habitual de proceder, nosso modo costumeiro de agir. Ao criticar de forma contundente os valores que norteiam nossa conduta, quer mostrar que, ao contrário do que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da humanidade, nem o mal para a sua degeneração.
Diagnosticar os valores estabelecidos é um dos propósitos que Nietzsche se coloca nos textos a partir de Assim Falava Zaratustra. Introduzindo a noção de valor, ele opera uma subversão crítica: põe de imediato a questão do valor dos valores e, ao fazê-lo, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se nunca se colocou em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, se nunca se hesitou em atribuir ao homem “bom” um valor superior ao do “mau”, é porque se consideraram os valores essenciais, imutáveis, eternos.
Mas, ao contrário do que sempre se acreditou, Nietzsche quer evidenciar que os valores “bem” e “mal” têm uma proveniência e uma história. Eles não existiram desde sempre, não são obra de uma divindade ou de um princípio superior. “Humanos, demasiado humanos”, em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados; por isso mesmo, surgem, passam por transformações e podem vir a desaparecer, dando lugar a novos valores.

Na Grécia antiga dos tempos homéricos, a aristocracia guerreira concebeu espontaneamente o princípio “bom”, que atribuiu a si mesma; só depois criou a ideia de “ruim”, como “uma pálida imagem-contraste”, para designar os que não pertenciam à casta, os que não eram dignos de serem inimigos. Com o judaísmo e o cristianismo, os sacerdotes converteram a preeminência política em preeminência espiritual. Enquanto valor aristocrático, “bom” se identificava a nobre, belo, feliz; tornando-se valor religioso, passou a equivaler a pobre, miserável, impotente, sofredor, piedoso, necessitado, enfermo. A transformação por que então passaram os valores morais foi fruto do ressentimento de homens fracos, que, não podendo lutar contra os mais fortes, deles tentaram vingar-se através desse artifício.
Nesse sentido, a religião cristã, desde o seu apareci-?mento, desempenhou papel de extrema relevância. Criação do apóstolo Paulo, ela veio impor o reino dos fracos e dos oprimidos. Se Nietzsche se dedica a criticá-la de forma radical, é antes de mais nada porque a vê como um sintoma da degeneração dos impulsos vitais. Produto do ódio e desejo de vingança daqueles a quem não é dado reagir e só resta res-sentir, ela seria a expressão mesma da decadência.
Perspectivismo, não relativismo
Ora, ao apontar as diferentes perspectivas a partir das quais surgem os valores, Nietzsche conta desmontar o mecanismo insidioso que impedia de questioná-los. Não vacila em levar à mesa de dissecação o ressentimento, a culpa e a má consciência, o altruísmo, o amor ao próximo e as chamadas virtudes cristãs. Com um agudo sentido de análise, empenha-se em desvendar o funcionamento secreto das paixões do homem.
É em Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort que Nietzsche se inspira em suas reflexões acerca da conduta humana. É neles, ao lado do escritor Stendhal, que encontra alimento para as suas reflexões morais. Os chamados moralistas franceses, em vez de procurar pautar o comportamento do homem por alguma lei divina ou princípio superior, propõem-se estudar o ser humano tal como ele é. Sem se preocupar com a natureza humana universal ou a misericórdia de Deus que viria salvá-la, querem tomar por objeto de estudo o homem, sem recorrer à metafísica ou à teologia.
A obra que esses pensadores empreendem consiste, de modo geral, numa análise sutil dos móveis do homem. Embora quase todos cuidem do modo de agir individual, sempre o concebem como determinado ou corrompido por preconceitos da sociabilidade. No século 17, Pascal dedica-se a fazer ver que o homem sempre se ilude a respeito de si mesmo. É por desconhecer-se que se imagina grande; é para evitar o espetáculo da própria condição que recorre a dissimulações. Observa como as conveniências sociais transformam seus móveis verdadeiros e, sob a máscara da vaidade, descobre seus apetites inconfessáveis. E, com muita propriedade, escreve nos Pensamentos: “Divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além” (fragmento 294). No século 18, Chamfort amplia o âmbito da pesquisa e chega a encarar a moralidade social como englobando ou alterando a dos indivíduos; no século 19, Stendhal é o primeiro que, pela observação comparada dos costumes de diversos povos, acredita atingir fatos gerais.
Assim como esses pensadores franceses que tanto admira, Nietzsche quer fazer ver que os valores não são universais. Mas nem por isso resvala no relativismo. Insiste, ao contrário, que não basta mostrar que os valores surgiram a partir de ângulos de visão diferentes. Não basta relacioná-los com as perspectivas que os engendraram; é preciso ainda investigar que valor norteou essas perspectivas ao criarem valores.



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ESCOLA ESTADUAL DEPUTADO RENATO AZEREDO
DISCIPLINA: FILOSOFIA
PROFESSOR: RODRIGO SOUZA

Ética, moral e sociedade
                                                                                                         

Em seu viver, o ser humano buscar tornar habitável a parte do mundo que forma para si na totalidade do mundo natural. Dividir a espaços, estabelecer maneiras constantes de agir e criar hábitos fazem parte desse processo de habitar humanamente o mundo.
O termo ética tem dupla origem no grego: êthos, com eta inicial, significa morada, abrigo permanente , refúgio; com épsilon inicial, significa o conjunto de costumes e normas de conduta destinado a ordenar a morada dos seres humanos e os modos de convivência**. Não encontramos pronta a nossa morada, mas devemos projetá-la, construí-la e fazer dela um lugar protegido e seguro. No latim, a palavra correspondente a ética é morale (demos, moris), que passou para o português, como sentido de “conjunto de regras de conduta consideradas válida, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada” ***.
            Também é denominada Ética a parte da filosofia que faz a reflexão crítica sobre a dimensão moral do comportamento humano. Cabe a ela investigar os fundamentos dos valores, problematizá-los , buscar sua consistência. Assim como a filosofia política não se confunde com a política, ética se distingue da moral. Enquanto esta se define como um conjunto de normas e prescrições, a ética procura os fundamentos dessas normas e prescrições.
           Todos os humanos constroem para si moradas, mas não o fazem da mesma forma. Os hábitos e costumes variam no espaço e no tempo; os valores não são os mesmos em toda todas as sociedades indistintamente. Cada grupo social tem seu jeito de viver: os indígenas, os esquimós e os brasileiros dos centros urbanos ocupam os espaços, interagem com a natureza e organizam a convivência social de formas diversas. Dentro de uma mesma cultura, os papéis sociais – que o pai deve ser, por exemplo – têm características diferentes nos diversos momentos históricos. Assim, todas as sociedades, cada qual a seu modo, criam sua morada: todas são éticas, mas cada uma tem sua moral, ou seja, seu conjunto de valores e normas de conduta.
A casa podemos designar a ética. Os estilos de casa e hábitos dentro da casa chamaremos de morais. A ética se dá sempre no singular; é a exigência do ser humano de habitar humanamente seu mundo. As morais se dão no plural, porque as formas e modos de habitar o mundo dão múltiplas e variáveis****.
Somente os homens e as mulheres estabelecem normas de conduta, porque somente os seres humanos, nas suas relações uns com os outros, atribuem sentido e valor às próprias ações. A ética e a moral fazem parte, portanto, do domínio da cultura, do dever ser, daquilo que torna humano o homem.


ATIVIDADE


1) De acordo com sua leitura do texto acima, e de seus conhecimentos sobre Ética e Moral, elabore um texto critico com no mínimo 15 linhas a partir da seguinte citação:


 “A casa podemos designar a ética. Os estilos de casa e hábitos dentro da casa chamaremos de morais. A ética se dá sempre no singular; é a exigência do ser humano de habitar humanamente seu mundo. As morais se dão no plural, porque as formas e modos de habitar o mundo dão múltiplas e variáveis”
ESCOLA ESTADUAL DEPUTADO RENATO AZEREDO
DISCIPLINA FILOSOFIA
PROFESSOR RODRIGO SOUZA
 1º ano do ensino médio ( EJA )

Atitudes Filosóficas 

A questão da utilidade da filosofia é tão antiga quanto estrutural. Pensamos que cada geração de professores deve estar preparada para responder a esta pergunta de modo sério e vigoroso: para que serve a filosofia?
Seja nos anos 70 do séc. XX, no Ministério da Educação em Brasília, seja no início do séc. V a.C., na ágora da antiga Atenas, a mesma questão é retomada obstinadamente, ou seja, a pretensão filosófica ao saber tem que legitimar sua inserção na cidade, perante os saberes técnicos e utilitários que predominam na mentalidade operante da construção material da vida comum, assim como da racionalidade eficaz da vida política e jurídica.
Retomamos o tema pelo viés socrático: a prática do filosofar vale não só pelo bem em si que ela significa, mas também pelos resultados que proporciona (República II). A filosofia é útil e sua utilidade decorre do seu efeito pedagógico e de sua força educadora, necessária para a humanização do ser humano, necessária para que se possa construir uma consciência autônoma, um estado de direito, em suma, uma cidade justa.
Não há nenhuma razão para perpetuarmos a imagem derivada de uma leitura rápida da Metafísica de Aristóteles, segundo a qual o filósofo seria um indivíduo totalmente desinteressado, que estaria acima das solicitações do interesse e do desejo humanos. Não devemos e nem precisamos contrapor filosofia e vida prática interessada. Na verdade, os antigos gregos nos ensinaram que a racionalidade é simultaneamente prática e teórica; e se a prática racional é o domínio dos fins, da busca e realização dos valores, não faz sentido idealizarmos de maneira abstrata e irrealista uma atividade tão decisivamente humana, como se ela fosse supérflua e inútil, ou seja, como se ela não tivesse conseqüências para a vida.
Para decidirmos da suposta inutilidade da filosofia é preciso que se estabeleça o que entendemos por “útil”. Se pensarmos num plano bastante elementar, do instrumento mecânico, que é útil exclusivamente pelo resultado imediato que proporciona (como usar um martelo para pregar um prego, por exemplo), podemos e devemos, com certeza, reconhecer a inutilidade da filosofia. Ela certamente não é um instrumento neutro, sem nenhum sentido ou interesse nele mesmo. Mas se elaborarmos um pouco mais e pensarmos numa perspectiva axiológica, de reflexão sobre os valores (éticos, estéticos, culturais, entre outros), devemos reconhecer a profunda utilidade da filosofia. Nessa perspectiva, a utilidade se transforma em relevância cultural, papel pedagógico, formação humanística, fator determinante na instauração de valores culturais, elemento construtor da cidadania etc.
O pensar filosófico é uma modalidade do desejo (que os gregos chamavam de Éros) e, enquanto tal, pode e deve ser a expressão de aspirações humanas legítimas, marcadas por interesses variados, em diversos níveis. Na perspectiva contemporânea, não podemos mais simplesmente opor afetividade e pensamento reflexivo, emoção e inteligência; sabemos que o trabalho do pensamento filosófico se enraíza nas estruturas da afetividade humana e se desenvolve junto com elas. Nessa medida, exercer o pensamento filosófico de maneira viva e autêntica é da maior utilidade para os seres humanos. A Filosofia pode propiciar crescimento pessoal e psíquico, em termos de uma maior capacidade de auto-compreensão e expressão e, ainda, levar ao desenvolvimento de uma consciência crítica e autônoma. Enquanto debate racional, ela certamente proporciona crescimento cívico, respeito pelo outro e pela diferença que representa.
Com relação à especificidade do ensino da filosofia, pensamos, ainda, nas habilidades cognitivas, reflexivas e críticas que ele desenvolve no indivíduo. Habilidades que, talvez, pudessem ser adquiridas através de outras disciplinas, mas que, na verdade, devem ser concebidas num viés propriamente filosófico. O amadurecimento da formação nas universidades demonstra que há um modo filosófico próprio de conceber essas habilidades. É preciso estarmos atentos às interfaces, mas também às diferenças que delineiam a especificidade da Filosofia por oposição tanto à Psicologia como à História, por exemplo. Nesse sentido, pensamos que é fundamental que se tente construir as habilidades na convivência com a história dos problemas consagrados pela tradição como sendo filosóficos. Dentro da perspectiva histórico-cultural própria da Filosofia ocidental, o filosofar é um modo de viver e um fazer que, a nosso ver, deve incluir as seguintes atitudes:
Perceber - A atitude filosófica implica em saber acolher e detectar questões no plano do vivido, na cultura; é preciso ser sensível aos acontecimentos, saber discernir diferenças. Trata-se de uma sensibilidade inteligente (ou de uma inteligência sensível). Não basta erudição ou acúmulo de conhecimentos, é preciso acuidade de percepção, um discernimento que se experimenta e que aprende com a experiência. Filosofar implica sempre numa atitude interpretativa, numa capacidade de leitura, tanto de textos convencionalmente filosóficos, como de outros “textos” (objetos, obras de arte, acontecimentos, imagens, eventos e produtos culturais diversos). O perceber filosófico é um modo de estar no mundo, de se ver e ouvir o outro, de captar e decifrar signos, um modo que não parte de uma suposição de saber, mas que é uma aspiração (filo-) que se orienta por uma exigência de significação (-sophia).
Problematizar – A filosofia, em geral, caracteriza-se por sua atitude de questionamento do imediatamente dado, de desconfiança das aparências e de dúvida a respeito do óbvio. Pensar filosoficamente significa questionar, confrontar problemas. Ninguém pensa de graça, nós só pensamos autenticamente se tivermos que enfrentar obstáculos: em filosofia, o impasse é condição para a passagem.
Refletir – Mas, em última análise, não basta pensar; é preciso exercer um pensar que envolva o sujeito, que volte-se sobre aquele que pensa. Nesse sentido, o pensar filosófico parte do sujeito, encontra-se com o objeto e volta-se novamente sobre o sujeito; esse percurso reflexivo, portanto, é próprio de uma tomada de consciência que vem a posteriori, de um saber crepuscular ou que acontece no depois. Nesse sentido, o pensar filosófico é especular, é implicação do sujeito no problema a ser pensado.
Conceituar - Já desde os antigos, pensar filosoficamente implica em ser poeta, no sentido grego da palavra, ou seja, implica em fabricar, produzir, criar palavras e conceitos; ser capaz de sintetizar a experiência, uma multiplicidade vivida, na direção de uma unificação conceitual. Essa capacidade sintética significa pensar de modo criativo, percebendo e produzindo cultura, inteligência e pensamento.
Argumentar – A capacidade de argumentar é uma habilidade igualmente essencial: o filósofo tem que ser capaz de defender uma posição, atacar ou criticar outras, ou seja, é preciso que ele saiba sustentar com razões a posição que adota; trata-se de justificar coerentemente o conhecimento que se pretende ter; filosofar implica, sempre, em dar razões de si mesmo e de suas tomadas de posição, para si e para o outro, é isso o que lhe confere sua dignidade.


http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/index.aspx?id_projeto=27&id_objeto=58971&tipo=ob&cp=BF0000&cb=&n1=&n2=Proposta%20Curricular%20-%20CBC&n3=Ensino%20M%EF%BF%BDdio&n4=Filosofia&b=s