Criado por volta de 1920, o racismo enquanto conceito e realidade já foi objeto de
diversas leituras e interpretações. Já recebeu várias definições que nem sempre dizem a
mesma coisa, nem sempre têm um denominador comum. Quando utilizamos esse conceito
em nosso cotidiano, não lhe atribuímos mesmos conteúdo e significado, daí a falta do
consenso até na busca de soluções contra o racismo.
Por razões lógicas e ideológicas, o racismo é geralmente abordado a partir da raça,
dentro da extrema variedade das possíveis relações existentes entre as duas noções. Com
efeito, com base nas relações entre “raça” e “racismo”, o racismo seria teoricamente uma
ideologia essencialista que postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados
raças contrastadas que têm características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas
suportes das características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa
escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo é uma crença na
existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o
moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido
sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo
definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais,
lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele
pertence. De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as
características intelectuais e morais de um dado grupo, são conseqüências diretas de suas
características físicas ou biológicas.
Mas o racismo e as teorias que o justificam não caíram do céu, eles têm origens
mítica e histórica conhecidas. A primeira origem do racismo derive do mito bíblico de Noé
do qual resulta a primeira classificação, religiosa, da diversidade humana entre os três
filhos de Noé, ancestrais das três raças: Jafé (ancestral da raça branca), Sem (ancestral da
raça amarela )e Cam (ancestral da raça negra). Segundo o nono capitulo da Gênese, o
patriarca Noé, depois de conduzir por muito tempo sua arca nas águas do dilúvio, encontrou
finalmente um oásis. Estendeu sua tenda para descansar, com seus três filhos. Depois de
tomar algumas taças de vinho, ele se deitara numa posição indecente. Cam, ao encontrar
seu pai naquela postura fez, junto aos seus irmãos Jafé e Sem, comentários desrespeitosos
sobre o pai. Foi assim que Noé, ao ser informado pelos dois filhos descontentes da risada
não linzongeira de Cam, amaldiçoou este último, dizendo: seus filhos serão os últimos a ser
escravizados pelos filhos de seus irmãos. Os calvinistas se baseiam sobre esse mito para
justificar e legitimar o racismo anti-negro. A Segunda origem do racismo tem uma história
conhecida e inventariada, ligada ao modernismo ocidental. Ela se origina na classificação
dita científica derivada da observação dos caracteres físicos (cor da pele, traços
morfológicos). Os caracteres físicos foram considerados irreversíveis na sua influência
sobre os comportamentos dos povos. Essa mudança de perspectiva foi considerada como
um salto ideológico importante na construção da ideologia racista, pois passou-se de um
tipo de explicação na qual o Deus e o livre arbítrio constituí o eixo central da divisão da
história humana, para um novo tipo, no qual a Biologia (sob sua forma simbólica) se erige
em determinismo racial e se torna a chave da história humana.
Insisto sobre o fato de que o racismo nasce quando faz-se intervir caracteres
biológicos como justificativa de tal ou tal comportamento. É justamente, o estabelecimento
da relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas,
intelectuais e culturais que desemboca na hierarquização das chamadas raças em superiores
e inferiores. Carl Von Linné, o Lineu, o mesmo naturalista sueco que fez a primeira
classificação racial das plantas, oferece também no século XVIII, o melhor exemplo da
classificação racial humana acompanhada de uma escala de valores que sugere a
hierarquização.Com efeito, na sua classificação da diversidade humana, Lineu divide o
Homo Sapiens em quatro raças:
· Americano, que o próprio classificador descreve como moreno, colérico,
cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, tem corpo pintado.
· Asiático: amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos,
usa roupas largas.
· Africano: negro, flegmático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela
vontade de seus chefes(despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua
mulher tem vulva pendente e quando amamenta seus seios se tornam moles e
alongados.
· Europeu: branco, sangüíneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado
pelas leis, usa roupas apertados.
Como Lineu conseguiu relacionar a cor da pele com a inteligência, a cultura e as
características psicológicas num esquema sem dúvida hierarquizante, construindo uma
escala de valores nitidamente tendenciosa? O pior é que os elementos dessa hierarquização
sobreviveram ao tempo a aos progressos da ciência e se mantêm ainda intactos no
imaginário coletivo das novas gerações. No entanto, não foi, até o ponto atual dos
conhecimentos, cientificamente comprovada a relação entre uma variável biológica e um
caractere psicológico, entre raça e aptidões intelectuais, entre raça e cultura.
A concepção do racismo baseada na vertente biológica começa a mudar a partir dos
anos 70, graças aos progressos realizados nas ciências biológicas (genética humana,
bioquímica, biologia molecular) e que fizeram desacreditar na realidade científica da raça.
Assiste-se então ao deslocamento do eixo central do racismo e ao surgimento de formas
derivadas tais como racismo contra mulheres, contra jovens, contra homossexuais, contra
pobres, contra burgueses, contra militares, etc. Trata-se aqui de um racismo por analogia ou
metaforização, resultante da biologização de um conjunto de indivíduos pertencendo a uma
mesma categoria social. É como se essa categoria social racializada (biologizada) fosse
portadora de um estigma corporal. Temos nesse caso o uso popular do conceito de racismo,
qualificando de racismo qualquer atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça
social.
Esse uso generalizado do racismo pode constituir uma armadilha ideológica, na
medida em que pode levar à banalização dos efeitos do racismo, ou seja, a um
esvaziamento da importância ou da gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo.
Por que os negros se queixam tanto, pois afinal não são as únicas vítimas do racismo
(?),indagariam os indivíduos motivados por essa lógica de banalização. Em conseqüência, o
racismo com seus múltiplos usos e suas numerosas lógicas se torna tão banal que é usado
para explicar tudo. Mas o deslocamento mais importante do eixo central do racismo pode
ser observado bem antes dos anos 70, a partir de 1948, com a implantação do apartheid na
África do sul. O apartheid (palavra do Afrikans), foi oficialmente definido como um
projeto político de desenvolvimento separado, baseado no respeito das diferenças étnicas ou
culturais dos povos sul africanos. Um projeto, certamente fundamentado no
multiculturalismo política e ideologicamente manipulado. Observa-se também que é em
nome do respeito das diferenças e da identidade cultural de cada povo que o racismo se
reformula e se mantém nos países da Europa ocidental contra os imigrantes dos países
árabes, africanos e outros dos países do Terceiro mundo, a partir dos anos 80. Já no fim do
século passado e início deste século, o racismo não precisa mais do conceito de raça no
sentido biológico para decretar a existência das diferenças insuperáveis entre grupos
estereótipos. Além da essencialização somático-biológica, o estudo sobre o racismo hoje
deve integrar outros tipos de essencialização, em especial a essencialização históricocultural.
Embora a raça não exista biologicamente, isto é insuficiente para fazer desaparecer
as categorias mentais que a sustentam. O difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em
nossas representações e imaginários coletivos. Enquanto o racismo clássico se alimenta na
noção de raça, o racismo novo se alimenta na noção de etnia definida como um grupo
cultural, categoria que constituí um lexical mais aceitável que a raça(falar politicamente
correto).
Estamos entrando no terceiro milênio carregando o saldo negativo de um racismo
elaborado no fim do séculos XVIII aos meados do século XIX. A consciência política
reivindicativa das vítimas do racismo nas sociedades contemporâneas está cada vez mais
crescente, o que comprova que as práticas racistas ainda não recuaram. Estamos também
entrando no novo milênio com a nova forma de racismo: o racismo construído com base
nas diferenças culturais e identitárias. Devemos, portanto observar um grande paradoxo a
partir dessa novo forma de racismo: racistas e anti-racistas carregam a mesma bandeira
baseada no respeito das diferenças culturais e na construção de uma política
multiculturalista. Se por um lado, os movimentos negros exigem o reconhecimento público
de sua identidade para a construção de uma nova imagem positiva que possa lhe devolver,
entre outro, a sua auto-estima rasgada pela alienação racial, os partidos e movimentos de
extrema direita na Europa, reivindicam o mesmo respeito à cultura “ocidental” local como
pretexto para viver separados dos imigrantes árabes, africanos e outros dos países não
ocidentais.
Depois da supressão das leis do apartheid na África do sul, não existe mais, em
nenhuma parte do mundo, um racismo institucionalizado e explícito. O que significa que os
Estados Unidos, a África do Sul e os países da Europa ocidental se encontram todos hoje no
mesmo pé de igualdade com o Brasil, caracterizado por um racismo de fato e implícito, as
vezes sutil (salvo a violência policial que nunca foi sutil). Os americanos evoluíram
relativamente em relação ao Brasil, pois além da supressão das leis segregacionistas no Sul,
eles implantaram e incrementaram as políticas de “ação afirmativa”, cujos resultados na
ascensão sócio-econômica dos afro-americanos são inegáveis. Os sul africanos evoluíram
também, pois colocaram fim às leis do apartheid e estão hoje no caminho de construção de
sua democracia, que eles definem como uma democracia “não racial”. No Brasil o mito de
democracia racial bloqueou durante muitos anos o debate nacional sobre as políticas de
“ação afirmativa” e paralelamente o mito do sincretismo cultural ou da cultura
mestiça(nacional) atrasou também o debate nacional sobre a implantação do
multiculturalismo no sistema educacional brasileiro.
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