terça-feira, 3 de agosto de 2010

NATUREZA E CULTURA [parte 1]

INTRODUÇÃO

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Quando falamos em “natureza”, atualmente, pensamos logo na realidade exterior, no meio ambiente em que nascemos e vivemos, e que marcamos tão fortemente com nossa presença, nossas técnicas, esse mundo natural no qual construímos nossas cidades, que cortamos com nossas estradas, e cuja existência acreditamos estar ameaçada, por causa de nossa atitude predatória com relação a ele.

No entanto, a natureza pode ser compreendida de maneira mais ampla, ou seja, como abarcando mais do que esse “lugar” ou essa “exterioridade” que recebemos de presente quando nascemos. É muito importante percebermos que, na verdade, os termos natureza e natural referem-se àquilo que nos é dado (ou imposto), não só externa, mas também internamente, como determinações que nos definem e que não podemos alterar ou que, para serem alteradas exigem muita inventividade ou técnica.

Nessa perspectiva temos pelo menos três âmbitos do que pode ser chamado de natural: 1. A natureza exterior (os recursos naturais, o mundo tal como o encontramos, "lugar" ou "exterioridade"); 2. A natureza enquanto as características internas dos seres em geral, aquelas com as quais eles nascem (por pertencerem a uma espécie); seriam aquelas características que, juntas e articuladas, formariam o que se poderia chamar de constituição inata, que incluiria tendências, potencialidades, disposições ou estruturas tais que permitiriam (ou impediriam) o desenvolvimento de certos modos de ser. 2.1. No caso do ser humano, em geral, seu corpo (mortal, sexuado, dotado de alguns sentidos e não de outros) e suas características psíquicas, com suas potencialidades (capacidade de raciocínio, de desenvolver linguagem e de fabricar cultura); 3. Podemos ainda pensar na natureza particular de cada indivíduo (que inclui este ou aquele tamanho, marcas próprias singulares, maior ou menor aptidão para aprender alguma coisa, ser magro ou gordo, ser homem ou mulher, etc.).

Se o âmbito da natureza é fonte de determinações que não dependem de nossa vontade ou escolha, já o âmbito da cultura é, num primeiro sentido, fabricado por nós mesmos, ou seja, a cultura é tanto o processo como o resultado da ação criadora por parte dos seres humanos. Nessa primeira formulação, a cultura inclui tudo o que não é natural, ou seja, tudo o que os diferentes grupos humanos inventam, produzem, fabricam, criam, escolhem e estabelecem para si próprios.

Cultura são as cidades, as indústrias, as técnicas e os produtos das técnicas, os materiais e objetos fabricados; e também as línguas, os códigos, os livros, as leis, os costumes, a memória dos costumes, as regras, as artes, os objetos das artes, as imagens, as convenções, os comportamentos, etc.

Na verdade, a distinção entre natureza e cultura é muito difícil de ser feita, porque, como veremos, muitas dessas "produções" humanas só são possíveis por contarem com certas disposições naturais. Mas é importante pensar sobre essas dimensões da realidade, separadamente e em suas relações, para que possamos formular alguns problemas fundamentais, compreendê-los e, eventualmente, tomar decisões em nossas vidas, individuais e coletivas.

A relação entre as esferas da natureza e da cultura é uma dos temas principais da filosofia ocidental desde os gregos antigos. Tomar consciência de sua diferença e tentar compreender os modos como se relacionam são tarefas que geram uma série de questões e debates, problemas que recebem múltiplas versões e formulações ao longo da história das técnicas, das ciências, das artes e da filosofia.

Algumas coisas nos parecem certas, atualmente: não se trata de se sobrepor a cultura à natureza, como duas camadas justapostas, nem de reduzir ou assimilar uma dimensão à outra, como se a natureza se dissolvesse na cultura, ou como se fosse possível naturalizar totalmente a complexidade do mundo cultural. É preciso compreender cada uma das duas esferas, nelas mesmas e também nas suas relações. É difícil pensá-las separadamente, mas o esforço é instrutivo, ou seja, vale a pena tentar diferenciá-las através da pesquisa, da reflexão e do diálogo; mas, acima de tudo, é preciso vivenciar suas relações como problemas, para sermos capazes de vislumbrar seu alcance e sua importância para nossas vidas.

O que surge dessa experiência reflexiva é a compreensão de que o que parece estar em questão na discussão é nosso interesse em sabermos o que, afinal de contas, é o ser humano! E essa é uma tarefa que não podemos evitar: para vivermos bem (ou melhor), temos que pensar certos problemas, seja no plano instrumental (técnico e operacional), seja no plano comunicativo (moral e político).

Vejamos algumas questões que servirão para nos mostrar a importância vital da reflexão filosófica sobre a relação entre natureza e cultura.

Questões

Ecológicas - Os grupos humanos podem usufruir dos recursos naturais sem pensar nos seus limites? Um fazendeiro pode utilizar a água do rio que passa em sua propriedade, do modo como quiser? A dona de casa pode continuar lavando o passeio com a mangueira de água? De que maneiras, ao usufruirmos dos bens de consumo, estamos contribuindo para o esgotamento dos recursos naturais? De que maneiras a satisfação de nossas demandas conduzem ao aquecimento excessivo do planeta, esse lugar que é nossa residência natural?

Antropológicas - O que distingue o ser humano de outros animais? O que aproxima o ser humano de outros animais? Existe uma natureza (essência) humana? Num ser humano, é possível distinguir o que é natural do que é cultural? Num ser humano, como se relacionam fragilidade e força, precariedade e riqueza?

Culturais - Como explicar a diversidade das línguas e das culturas? Como explicar que os seres humanos, geneticamente os mesmos, se adaptem a circunstâncias naturais tão distintas e adversas, como o deserto e a floresta tropical? Existem culturas inferiores ou superiores, umas às outras?

Pedagógicas - É possível mudar o comportamento de alguém que tem tendências agressivas? Uma criança pode ser obrigada a aprender a jogar futebol? Uma menina tem que, necessariamente, gostar de ser mãe? Um menino que se torna pai deve ser obrigado a sustentar seu filho? A sexualidade é uma orientação natural a ser aceita ou uma escolha?

Éticas - Enquanto determinado por fatores naturais (sexo, cor da pele, força física, altura, etc.) um indivíduo deve ter certas funções sociais previamente estabelecidas? Alguém pode ser valorizado ou desvalorizado por ser indígena, oriental ou negro? Alguém pode ser prejudicado por ter menos força física?

Jurídicas - As leis devem ser aplicadas a todos os indivíduos igualmente, sem levar em conta as diferenças dos ambientes naturais em que vivem? Os indivíduos devem ser julgados sem se levar em conta as particularidades culturais nas quais foram educados?

OS ANTIGOS

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As primeiras formulações

A concepção antiga de "natureza" (phýsis para os gregos, natura para os latinos) remete à vida como processo e sua manifestação, ao fato de se estar vivo e em permanente transformação, ou seja, ao fato de os seres nascerem, crescerem e morrerem. A noção geral de natureza inclui tanto o processo (de transformação) como o resultado (algo que permanece), sendo que o termo grego enfatiza a dimensão vegetal (uma planta que brota) e o termo latino, a dimensão animal (um homem que nasce). E ainda, podemos falar seja da natureza como o conjunto dos seres, o todo, seja da natureza de um ser em particular, indicando com isso o modo de ser próprio de uma coisa. Resumindo, a natureza pode ser pensada, então, como o todo (o universo) ou a parte (um ser), e sob os aspectos dinâmico (processo) e estático (constituição ou essência).

Num sentido amplo, os gregos antigos não opunham radicalmente natureza e cultura; em geral, incluíam na phýsis tudo o que, hoje, compreendemos como o “universo”, mesmo as cidades, os seres humanos e as coisas que produzem. Mas se formos considerar cada autor ou pensador separadamente, no detalhe, encontraremos uma pluralidade de concepções. Veremos aqui apenas algumas delas.

Os primeiros filósofos são filósofos da natureza (ditos físicos ou fisiólogos), e buscam reconhecer no universo o princípio de todas as coisas, a partir do qual se reconhece uma justiça cósmica, um poder que regule as mudanças e diferenças, na ordem do tempo, conferindo-lhes medida e equilíbrio. Anaximandro de Mileto e Parmênides de Eléia foram dois desses primeiros pesquisadores que pensavam que há uma justiça divina que garante a ordem do cosmo ou da natureza.

Dica - Sobre esses filósofos gregos veja, na Bibliografia, o volume Os pré-socráticos, da coleção Os Pensadores.

Os sofistas

Aos poucos, os filósofos começam a perceber que as leis e costumes humanos são realidades diferente da totalidade natural, passando a opor a lei humana (nómos), a comunidade política, as coisas instituídas ou fabricadas à natureza (phýsis). Só que essa nova modalidade de lei será objeto de permanente conflito. A lei dos homens perante a natureza será, então, a primeira versão daquilo a que hoje nos referimos como a oposição entre natureza e cultura.

O mito de Prometeu é o mito grego que primeiro situa o ser humano como constituído pelo cruzamento entre as dimensões natural e cultural. Conhecemos pelos menos três versões desse relato mítico: uma arcaica, do poeta Hesíodo, outra trágica, do poeta Ésquilo e uma filosófica, do sofista Protágoras de Abdera, transmitida por Platão.

Dica – Veja um resumo do mito de Prometeu e outras idéias relacionadas, nas Orientações Pedagógicas e nos Roteiros de Atividades – Natureza e cultura. Página do Centro de Referência Virtual do Professor.

De modo sintético, de acordo com a versão de Protágoras de Abdera (séc. V a.C.), podemos dizer que o ser humano, tal como é pensado pelo racionalismo dos sofistas, é, por natureza, um ser mortal, sexuado e desprovido de recurss, e que terá que providenciar soluções culturais se quiser sobreviver. Frágil, nu e esquecido dos deuses, sua pobreza (natureza) é sua riqueza (cultura); para enfrentar a finitude e a incompletude, tem que, antes de tudo, tomar consciência de sua precariedade. Segundo esta versão do mito, a humanidade só se institui, de fato, na natureza, mas não naturalmente; quer dizer, o ser humano não se torna "naturalmente" o que é ou o que pode ser; ele só se torna propriamente humano, culturalmente. Ele tem que fabricar seus próprios recursos técnicos e simbólicos, tem que aprender a trabalhar, a amar e a morrer; tem que buscar uma significação para a morte, aprender a direcionar o impulso sexual e a desenvolver o trabalho, as técnicas e a vida política organizada (cultura).

Essa primeira diferenciação entre lei (no sentido amplo dos primeiros filósofos) e natureza propicia, na cultura grega, discussões fundamentais para todos nós, como a diferença ou igualdade entre os seres humanos, a origem da linguagem e a necessidade da educação.

"Agimos como bárbaros uns em relação aos outros, enquanto, por natureza, todos, em tudo, nascemos igualmente dispostos para sermos tanto bárbaros, quanto gregos. É o caso de se observar as coisas que, por natureza, são necessárias a todos os homens: a todos são acessíveis pelas mesmas capacidades, e em todas essas coisas nenhum de nós é determinado nem como bárbaro, nem como grego. Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas."

Antifonte, Papiro Oxyrhynchus, fragmento DKB44.

"Considero que a primeira das realizações que se dão entre os homens é a educação; pois, se o princípio de uma realização é produzido retamente, é verossímil que, retamente, há de acontecer o fim; pois, quando se introduz a semente na terra, é preciso esperar pelo desabrochar; e quando se planta a nobre educação no corpo novo, desse modo ele vive e floresce durante toda a vida, e nem a chuva, nem a seca o impedem."

Antifonte, citado por Estobeu, fragmento DKB60.

A lei do mais forte

Uma passagem do historiador Tucídides (séc. V a.C.) mostra claramente o alcance político do problema da relação entre natureza e cultura, no diálogo, reconstituído por ele, entre os cidadãos de Atenas e a população da ilha de Melos, que se rebelava contra o imperialismo ateniense.

"Atenienses - Segundo a opinião, acreditamos que os deuses e, sabemos claramente, que os homens, de acordo com a necessidade da natureza, dominam pela força. Não estabelecemos esta lei, nem fomos os primeiros a usá-la, mas a utilizaremos e a deixaremos para a posteridade, para sempre, sabendo que vós e outros fariam o mesmo se pudessem."

TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso V, 105.

Leia também este trecho do diálogo Górgias de Platão,

"Górgias - Penso que a própria natureza mostra que a justiça consiste em o melhor ter mais que o pior, e o mais forte mais que o menos forte. É assim em todo lugar, é o que a natureza ensina, em todas as espécies animais, em todas as raças humanas e em todas as cidades. Se o mais forte domina o menos forte e se ele lhe é superior, isso é um sinal de que é justo."

Platão. Górgias 483C-D

Na primeira passagem, vemos a inversão da associação entre natureza e justiça, explorada pelos filósofos da natureza. Os atenienses se apóiam numa suposta força necessária ou lei da natureza para justificar seu poder e sua dominação dos mais fracos. Na segunda, o personagem Cálicles sustenta que a justiça é que o forte domine o fraco; ele pensa que a justiça de acordo com a lei instituída é uma arma dos fracos para se defenderem dos fortes; os fortes devem impor-lhes a lei da natureza.

Platão – a natureza inteligível

Nos seus diálogos, Platão (428-347 a.C.) empreende um amplo debate com sofistas e poetas, que eram os educadores de sua época. Na sua obra, todas as questões relativas ao ser humano são pautadas pela oposição entre natureza e cultura: a educação, a melhor constituição para a cidade, a linguagem, as relações entre homens e mulheres, as relações entre gregos e bárbaros, etc., sempre remetendo a uma lei da natureza que traduziria uma justiça cósmica.

No Górgias, ainda, Sócrates se opõe a Cálicles, nos seguintes termos:

"Sócrates - Alguns sábios dizem, Cálicles, que o céu, a terra, os deuses e os homens, formam juntos uma comunidade, que são ligados pela amizade, pelo amor da ordem, o respeito da temperança e o senso da justiça. É por isso, companheiro, que chamam o todo (do mundo) de "cosmo" ou ordem do mundo, e não desordem ou desregramento. Mas tu, apesar de ser sábio, não me pareces dar muita atenção a esse tipo de coisas; ao contrário, não percebes que a igualdade geométrica tem muito poder, tanto entre os deuses, como entre os homens, mas pensas que cada um deve buscar ter mais do que os outros, e, na verdade, não cuidas da geometria."

Platão, Górgias 507e-508A.

O que Sócrates quer dizer é que, ao estudar a geometria, junto com a cosmologia, descobrimos que existe uma ordenação inteligível no universo, que as atitudes do homem individual devem levar em conta o fato de ele ser parte integrante desse universo maior, que é a natureza física. Vista desse jeito, a geometria serviria para que Cálicles encontrasse uma medida para a ambição desenfreada, na direção da temperança e da justiça.

No diálogo Timeu, escrito por Platão no fim da vida, o personagem principal propõe que um deus artesão produziu a totalidade da natureza, segundo modelos inteligíveis (as ideias ou formas), a partir de um material sem forma. A cosmologia (teoria do universo) platônica apresentada nesse diálogo, de fato, nos leva a pensar que o universo é imperfeito, porque os seres são vistos como imagens de modelos perfeitos, ou seja, não coincidem com eles; mas, por outro lado, fica claro também que este é o melhor mundo possível, porque a natureza é modelada segundo o máximo de racionalidade que o material utilizado comporta. O universo físico é, portanto, impregnado de racionalidade, determinado por formas que o delimitam e que também indicam suas possibilidades; o cosmo é povoado por seres que nascem, crescem e morrem, recebendo e tendo como parâmetro, mas também perdendo, ao longo de sua existência, as determinações inteligíveis que fazem com que sejam o que são. Neste universo está incluída a cidade-Estado (pólis), ou seja, os seres humanos e sua cultura, com sua vida e sua morte.

Na República, Sócrates propõe uma educação para os governantes, que começa com música e ginástica, passa pelas matemáticas e culmina com a filosofia ou dialética, ciência que tem como objeto último as formas inteligíveis:

"Sócrates - (...) com relação aos jovens de vinte anos e aos ensinamentos que, na sua educação quando crianças, lhes havíamos apresentado de maneira superficial, será preciso reuni-los de modo a lhes dar uma visão de conjunto do parentesco dos ensinamentos uns com os outros e com a natureza do ser."

PLATÃO. República VII 537C.

"Sócrates - (os dirigentes desenhariam o esquema da constituição da cidade (...) em seguida, creio, para completar sua obra, eles olhariam muitas vezes para um lado e para o outro, seja na direção daquilo que é, por natureza, justo, belo e temperante e tudo mais, seja na direção daquilo que produziriam entre os homens (...)."

PLATÃO. República VI 501B.


"Sócrates - Não há, meu amigo, nenhuma ocupação daqueles que administram uma cidade que seja própria de uma mulher, porque ela é mulher, nem de um homem porque ele é um homem; mas as naturezas são igualmente distribuídas entre as duas ordens de seres vivos; a mulher participa de todas as ocupações, e isto conforme a natureza, e o homem também de todas, mesmo que, em todas, a mulher seja mais fraca que o homem."

Platão. República V 455D-E.

Essa posição de Sócrates sugere que Platão está pensando numa natureza humana compreendida como essência inteligível, algo que unifica a compreensão da espécie, mas que mantém a diversidade das determinações biológicas dos sexos. Politicamente, as mulheres devem ser incluídas no processo de formação, para se tornarem guardiãs (com formação militar), filósofas (com formação intelectual), e, eventualmente, governantes. Essa proposta torna possível pensar a diferença na semelhança, ou a multiplicidade (natureza física) na unidade (natureza inteligível).

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Os cínicos - viver segundo a natureza

Finalmente, vejamos rapidamente algumas das propostas dos filósofos chamados "cínicos" que propunham que devemos todos "viver segundo a natureza". Foram filósofos do período chamado helenístico, conhecidos por assumir a filosofia como modo de vida radical; sua marca é a transgressão das regras estabelecidas (culturais) em nome da valorização de uma suposta vida "natural". A própria palavra "cínico" vem do termo grego para "cão", sugerindo que viver com sabedoria é viver como um animal. Desses filósofos chegaram-nos apenas fragmentos de textos ou relatos indiretos de episódios vividos por eles.

Diógenes de Sinope (que morreu por volta de 325 a.C.) pensava que os seres humanos têm sempre à sua disposição os meios fáceis para viver, só que esses estão ocultos; para conhecê-los é preciso seguir as exigências da natureza.

"Interrogado sobre qual seria a coisa mais bela entre os homens disse: a liberdade da palavra". (...) "Costumava fazer qualquer coisa à luz do sol, mesmo o que diz respeito a Demeter e Afrodite" (comer e amar). (...) "Se comer não é estranho, nem mesmo na praça pública é estranho. Não é estranho comer; portanto, também não é estranho comer na praça pública". (...)"Costumava masturbar-se em público e dizia: quem me dera pudesse aplacar a fome, esfregando-me o ventre." Diógenes Laércio VI, 69 (as traduções são de M. G. Kuri e Olimar F. Jr).

"A alguém que pretendia que viver é um mal, ele respondeu: não viver, mas viver mal". DL VI, 55.

"Ele tinha escrito a alguém para lhe encontrar uma pequena casa: como esse demorou a fazê-lo, Diógenes estabeleceu sua residência em um barril, perto do Metroon (...)". DL, VI 23

"Durante uma refeição, alguns jogavam-lhe os ossos como a um cão. Diógenes, retirando-se, urinou sobre eles, como um cão." DL VI,46.

"Certa vez, alguém o introduziu numa casa suntuosa e o proibiu de cuspir. Diógenes então pigarreou profundamente e cuspiu-lhe no rosto, dizendo não ter encontrado um lugar pior." DL VI, 32.

"Alguém perguntou a Diógenes qual era o tempo propício para se casar: "Para um jovem, disse ele, é cedo demais, para um velho, tarde demais." DL VI, 54.

"Segundo afirma Teofrasto no Megárico, foi observando um camundongo correndo de um lado para o outro, sem buscar um lugar de repouso, sem se preocupar com a escuridão, nem desejar nenhum dos reputados prazeres, que Diógenes encontrou uma saída para suas dificuldades. Ele foi o primeiro, segundo alguns, a dobrar o seu manto em dois porque precisava dele também para dormir; arranjou uma sacola, onde punha seu alimento, e se servia de todo lugar para todas as coisas, para comer, dormir e conversar (...)". DL VI, 22.

"Nada, dizia ele, absolutamente nada, pode ser realizado corretamente na vida sem ascese (exercício), que é capaz de tudo vencer. Assim, os homens que deviam escolher, contra os esforços inúteis, os que são conforme à natureza, para viverem com felicidade, sofrem na estupidez. (...) Falava e demonstrava essas coisas fazendo, falsificando realmente a moeda, sem conceder o mesmo valor às coisas segundo a lei, do que àquelas segundo a natureza." DL VI, 71.

OS MODERNOS - NATUREZA X CULTURA

A natureza como valor

Viver segundo a natureza?

No século XVIII, essa mesma questão evoca as reflexões do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo Rousseau, o cultivo da humanidade do homem se dá contra a natureza; paradoxalmente é o próprio fato de que o homem é um animal educável (cultivável) que faz com que ele possa ir contra sua natureza. Ele é crítico dos rumos que a sociedade de sua época e a civilização tomaram: a busca vã das ciências, o luxo das letras e das artes, a dissolução moral, toda uma lista de vícios que são vistos como marcas dos excessos da cultura que distancia o homem de sua natureza original.

É a partir dessa visão crítica que a natureza é pensada como a norma pela qual se julga a sociedade e que deve servir de parâmetro para uma eventual redescoberta da constituição humana; apesar da degeneração cultural, a natureza no ser humano permanece de algum modo, como núcleo a ser recuperado.

"Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles."

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Introdução, p.235.

"De que se trata, pois, precisamente, neste discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real."

ROUSSEAU. Discurso sobre a origem... Introdução, p.236.

A proposta de Rousseau não é voltar no tempo (cronologicamente) para reencontrar um impossível homem natural puro, mas buscar "reflexivamente" (logicamente) o ser humano tal como ele seria, sem o suposto "progresso" das culturas; a civilização deformou a natureza do homem, distorcendo-a e transformando-o em um ser animalesco. O curioso é que isso aconteceu, segundo o filósofo francês, como que através de uma inversão: é a própria natureza do homem, ou seja, sua capacidade de transformar-se, de aperfeiçoar-se (que Rousseau chama de perfectibilidade) que permite que ele se volte contra a natureza; a civilização faria um uso anti-natural da perfectibilidade natural dos homens. Mas, apesar de tudo, sob as alterações que sofreu, no fundo, permanece a natureza humana.

É pela reflexão que poderíamos distinguir o natural do cultural (artificial); Rousseau não propõe um abandono da cultura ou um retorno puro e simples à natureza; ele quer refletir criticamente sobre a sociedade, pensando filosoficamente a passagem de um estado a outro.


"Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil."

ROUSSEAU. Discurso sobre a origem... Introdução, p.23.

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"O mais forte não é nunca forte o suficiente para ser sempre o mestre, se ele não transformar sua força em direito e a obediência em dever. É daí que vem o direito do mais forte; direito considerado ironicamente na aparência e realmente estabelecido em princípio. Mas será que essa palavra nunca será explicada? A força é uma potência física; não vejo, de modo algum, que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade; é, além do mais, um ato de prudência. Em que sentido poderia ser um dever? (...) Ora, que direito é esse que termina quando acaba a força? Se for preciso obedecer pela força, não é preciso obedecer por dever; e se não se é forçado a obedecer, não se tem mais obrigação. Vemos, então, que essa palavra de direito não acrescenta nada à força; não significa nada (...) Convenhamos, então, que a força não faz o direito e que só devemos obedecer às potências legítimas."

ROUSSEAU. Do contrato social. Livro I, cap. III.

A cultura como valor

Para outros pensadores modernos, a grande referência para se pensar o homem é a cultura, não a natureza. Assim, o ser humano seria fundamentalmente um ser sem natureza, um ser aberto e plástico a ser moldado pela cultura. Para muitos, a cultura ou os costumes são pensados em franca oposição à natureza.

Segundo Montaigne (1533-1592), por exemplo, os costumes têm o poder de nos fazer aceitar como naturais ou racionais os atos mais diversos e contraditórios: ele vai do incesto às mutilações ou roupas ridículas (Ensaios I, 23), tudo pode passar a ser considerado como "natural". O costume, reforçado pelo hábito, é a base imprescindível da vida em comunidade; tudo pode ser aprendido, aceito ou modificado e rejeitado.

"Aqui se vive de carne humana; lá é dever de piedade matar o pai em uma certa idade; alhures os pais determinam, das crianças ainda no ventre das mães, quais eles querem que sejam conservadas e criadas e quais querem que sejam abandonadas e mortas; alhures os maridos velhos emprestam as mulheres aos jovens para que se sirvam delas (...). Além disso, o costume não fez uma república só de mulheres? Não lhes colocou armas nas mãos? (...) em que crianças de sete anos suportavam ser açoitadas até a morte, sem mudar de expressão? (...) Em suma, na minha opinião não há coisa alguma que ele (o costume) não faça ou não possa; e, com razão, Píndaro, pelo que me disseram, chama-o de rei e imperador do mundo (nómos basileus). (...) Na verdade, porque ingerimos o costume com o leite do nosso nascimento (...) parece que nascemos para seguir este procedimento".

MONTAIGNE. Ensaios I, 23.

No século XVIII, a partir da obra do filósofo alemão Kant (1724-1804), a corrente conhecida como o "idealismo alemão", uma filosofia dita "crítica" e "racionalista", começa a operar com a distinção entre "natureza" e "razão" que, de algum modo se sobrepõe à diferenciação entre natureza e cultura. Para essa corrente filosófica, a natureza constitui o âmbito dos fenômenos, ou seja, manifestações ou eventos sensíveis regidos por leis mecânicas. Do ponto de vista da racionalidade prática, ou seja, das razões próprias às ações humanas, o indivíduo que se deixa dominar pela natureza é aquele que fica preso no plano das necessidades, do prazer e da dor físicos, e que, assim, fica sujeito ao que Kant chama de "heteronomia" (a lei do outro, ou seja, quando alguém obedece a algo que não vem propriamente de dentro dele, mas de fora). O indivíduo "autônomo" (que tem sua lei própria) torna-se independente dos instintos; seria aquele cuja vontade segue a razão, segundo leis universais.

"É por preguiça e covardia que uma grande parte dos homens, depois que a natureza os libertou da direção alheia, permanece de bom grado durante toda a vida como menor de idade. E são essas mesmas causas que facilitam aos outros se tornarem tutores deles. É tão cômodo ser menor! Se um livro me empresta sua inteligência, se um padre substitui a minha consciência, se um médico julga da minha dieta, etc., não preciso mais preocupar-me por mim mesmo. (...) É, pois, difícil para cada homem em particular conseguir livrar-se desta menoridade tornada quase uma natureza. Ele chega até a amá-la e se sente realmente incapaz de servir-se de sua própria razão, porque nunca lhe deixaram fazer essa tentativa. Os regulamentos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de um uso, ou antes abuso, racional de seus dons naturais são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se desprendesse apenas daria um salto inseguro sobre um pequeno fosso, porque não está acostumado a tais movimentos livres. Por isso, são poucos os que, com o próprio esforço de seu espírito, conseguem sair da menoridade e empreender o caminho seguro."

KANT. O que é esclarecimento. Trad. F. Javier Herrero.

Assim, a cultura é pensada como pertencendo ao âmbito da liberdade e da razão, que deve dominar a natureza; é o reino dos fins, do dever-ser, por oposição à natureza, da superação do que é simplesmente "dado naturalmente". O desenvolvimento da razão seria a realização da finalidade última do ser humano, sendo superior à busca do prazer, que se restringe à natureza e aos instintos. Na verdade, nos pensadores que se seguem a Kant, como Hegel, a cultura é vista como a finalidade última da natureza humana, permitindo que ultrapassemos as necessidades e exigências corpóreas e materiais.

É assim que a "cultura" (racional e com pretensões universais) é proposta como um valor máximo ou uma norma a ser seguida pelos seres humanos. É apenas na medida em que o humano liberta-se do natural que ele consegue conquistar sua humanidade, que é da ordem do cultural-racional.

Essas posições racionalistas marcam de modo decisivo a civilização européia ocidental com uma dualidade de valores e de atitudes, que nos faz priorizar a dimensão cultural em detrimento de tudo o que é natural.

Só que, ao tentar assimilar a dimensão natural à dimensão cultural e dissolver uma na outra, a cultura pensada enquanto norma passa a ter características naturais: a estabilidade e a fixidez de certas tradições, por exemplo, ou as visões religiosas fundamentalistas. Os costumes e hábitos, em princípio, adquiridos pela educação, ou seja, no âmbito da cultura, ao serem inculcados e fixados, tornam-se uma segunda "natureza", na medida em que adquirem regularidade. A repetição mecânica dos atos, supostamente "livres e racionais", faz com que tendam a perder o sentido, tornado-se forma sem conteúdo. Nessa medida, curiosamente, a cultura se transforma numa natureza fabricada, adquirida, regida por leis mecânicas.

Portanto, na medida em que valorizamos excessivamente a dimensão cultural do ser humano, tornamo-nos cegos à legitimidade das demandas da esfera da natureza; é assim que as normas culturais podem se tornar excessivamente rígidas e inflexíveis, tendendo, paradoxalmente, a uma espécie de "naturalização".

[continua...]

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