terça-feira, 3 de agosto de 2010

A FILOSOFIA ANTIGA: Os materialistas e Platão

Alguns dos primeiros filósofos gregos, denominados pré-socráticos, construíram teorias que explicavam as várias dimensões da realidade a partir de um princípio material, como a água ou o ar, ou os quatro elementos (água, ar, terra e fogo). Segundo Leucipo e Demócrito (sec. IV a. C.), a realidade se compõe de átomos, minúsculas partículas indivisíveis, e do vazio entre eles. O vazio possibilita o movimento dos átomos e tudo o que existe origina-se a partir da união e da separação de átomos semelhantes entre si. As almas, como tudo o mais, também têm origem na conjunção de átomos, só que mais leves, esféricos, móveis e penetrantes. Sensações (paladar, audição, tato) e pensamento resultam do movimento dos átomos no corpo humano. Os atomistas antigos são, portanto, representantes de uma posição monista, pois, segundo eles, o psíquico e o físico são manifestações diferentes de uma mesma realidade material.


Text Box: Platão, pintado por Rafael, apontando para o mundo inteligível.

Platão (427-347a.C) colocou-se a si uma tarefa: demonstrar, contra aqueles que pensavam serem todas as coisas explicáveis pelos princípios materiais, que a alma tem uma natureza não material e diferente da realidade sensível e corpórea. Este é um dos pontos mais importantes de sua filosofia. Por um lado, a alma é, por sua natureza, superior ao corpo e deve comandá-lo: “Por exemplo, quando o corpo tem sede, a alma não o impede de beber? E quando tem fome não o impede de comer?” – pergunta ele, em seu diálogoFédon. Por outro, ele retoma da tradição órfica a idéia de que “o corpo é o túmulo da alma”, ou seja, pensa que, quando a alma está em contato com o corpo e com as coisas sensíveis, ela se desvia de seu objetivo, que é o conhecimento da verdade. Assim, “filosofar é aprender a morrer”, o que quer dizer que a filosofia é um modo de, pelo exercício do pensar, separar a alma do corpo, ou seja, de desinteressar-se das coisas sensíveis e aproximar-se do mundo inteligível e divino.

Cabe lembrar que a doutrina da alma de Platão é muito complexa, e apresenta-se com variações em suas diferentes obras. Aqui vamos explorar apenas alguns argumentos de Platão a favor da imaterialidade da alma, numa famosa passagem do diálogo Fédon, que exerceu grande influência no pensamento posterior ao filósofo.

CONTEXTO DO ARGUMENTO: Para entender o que se segue, é preciso ter em mente que os participantes do diálogo, Sócrates e Cebes, já se colocaram de acordo quanto ao seguinte: 1- o homem é composto de corpo e alma – mas não se sabe se a alma é material ou imaterial; 2- o que é composto, como o corpo, se decompõe e morre; já o que é simples e imaterial não se decompõe; 3- existem dois tipos de coisas: as coisas sensíveis, que são visíveis e compostas (e, portanto, sujeitos a decomposição), e as coisas invisíveis, perfeitas e imutáveis (as idéias, Sócrates refere-se à idéia do Bem e de Belo – que são imateriais e eternas). Conhecemos os corpos mediante as sensações de nosso próprio corpo. E as coisas perfeitas, não sensíveis, das quais temos as idéias, como as conhecemos? Porque são invisíveis, não podem ser conhecidas pelo corpo, logo, é a outra parte do homem, a alma, que as conhece. O texto abaixo pretende provar como a alma, que conhece o imortal, é também imortal, pois se assemelha a ele.

Sócrates: Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.

Cebes: Admitamos.

Sócrates: Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sempre sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.

Cebes: Admitamos também isso.

Sócrates: Bem, prossigamos. Não é verdade que nós somos constituídos de duas coisas, uma das quais é o corpo e a outra a alma?

Cebes: Nada mais verdadeiro.

Sócrates: Com qual destas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?

Cebes: Eis uma coisa que é clara para toda gente: com a espécie visível.

Sócrates: Por outro lado, o que é a alma? Coisa visível ou invisível?

Cebes: Não é visível, ao menos aos homens, Sócrates! (...)

Sócrates: Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que com o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?

Cebes: Necessariamente, Sócrates.

Sócrates: Não dizíamos, ainda, há pouco, que a alma utiliza às vezes o corpo para observar alguma coisa por intermédio da vista, ou do ouvido, ou de outro sentido? Assim, o corpo é um instrumento, quando é por intermédio de algum sentido que se faz o exame da coisa. Então a alma, dizíamos, é arrastada pelo corpo na direção daquilo que jamais guarda a mesma forma, ela mesma se torna inconstante, agitada, e titubeia como se estivesse embriagada: isso, por estar em contato com coisas deste gênero.

Cebes: Realmente.

Sócrates: Mas, quando, pelo contrário, ela examina as coisas por si mesma, quando se lança na direção do que é puro, do que sempre existe, do que nunca morre, do que se comporta sempre do mesmo modo (...) – ela cessa de vaguear e, na vizinhança dos seres de que falamos, passa ela também a conservar sua identidade e seu mesmo modo de ser: é que está em contato com coisas daquele gênero. Ora, este estado da alma, não é o que chamamos pensamento?

Cebes: Muito bem dito, Sócrates, e muito verdadeiro. (...)

Sócrates: Tomemos agora outro ponto de vista. Quanto estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? (...)

Cebes: Nada mais claro, Sócrates. A alma, com o divino, o corpo, com o mortal.

Sócrates: Bem, examina agora, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo a identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isto, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção, e provar que as coisas não se passam assim?

Cebes: Não, Sócrates.

Sócrates: Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?

(PLATÃO. Fédon 79a-80b. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Coleção os Pensadores).

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