Pense nas seguintes situações. Algumas pessoas arriscam suas vidas numa escalada, tendo em vista desfrutar de uma bela paisagem ou pelo prazer de vencer desafios. Outras serão capazes de atos de solidariedade envolvendo grande sacrifício, como o de dividir seu alimento com outra pessoa, mesmo tendo muito pouco. Isto nos leva a crer que, em se tratando do ser humano, a mera sobrevivência e bem estar do corpo parecem não ter a última palavra. Não raramente falamos que “a mente deve controlar o corpo” ou que “o ser humano deve ser definido pelas suas crenças, desejos e sentimentos e não por suas características físicas, como cor de pele, gênero e assim por diante”. Afirmamos também que é “a posse da razão que nos distingue dos outros animais” e que “não basta ter um corpo saudável, é preciso cultivar também a mente”.As artes plásticas, a poesia e a literatura nos remetem com freqüência a estas duas dimensões do humano. O quadro de René Magritte, ao lado, faz-nos pensar na pessoa composta por uma parte terrena e carnal e outra parte celestial e etérea.
O fragmento de poema abaixo sugere que o corpo é uma espécie de “outro” com quem o “eu” se defronta e com quem não se reconhece plenamente; fala de uma distância, um estranhamento entre o poeta e seu corpo.
As contradições do corpo
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
(...)
O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.
(....)
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.
Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.
Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984).
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