Uma das maiores dificuldades da teoria cartesiana, segundo a maioria de seus críticos, é oferecer uma explicação satisfatória de como é possível a união, no ser humano, de duas substâncias tão diferentes. Daí virão as principais objeções a seu dualismo. Outra objeção importante é que Descartes faz uma passagem indevida do pensamento ao ser: ao contrário do que afirma o filósofo, o fato de eu poder conceber em meu pensamento a alma sem o corpo não implica que a alma possa, na realidade, existir sem o corpo.
Apesar de dualista, o pensamento cartesiano: 1- está na origem da visão científica do corpo humano, pois pensa o funcionamento deste independentemente de qualquer noção religiosa ou imaterial de alma; e 2- está na origem da filosofia da mente contemporânea, pois é de Descartes a idéia de uma interioridade mental constituída das sensações, desejos, opiniões e idéias como um domínio demarcado e a ser investigado.
Filósofos como Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), que também era médico, opuseram-se ao dualismo cartesiano a partir de elementos fornecidos pelo próprio Descartes: se os corpos podem ser compreendidos como máquinas, se trazem em si a capacidade de se mover, nutrir e crescer, por que não poderiam também pensar? La Mettrie, por exemplo, leva às últimas conseqüências a concepção cartesiana de um corpo-máquina e elabora a teoria do “homem-máquina”, afirmando que tudo no ser humano, inclusive seu pensamento e racionalidade, é resultado de certas disposições materiais.
As principais teses de La Mettrie são: 1- a experiência nos mostra que influência entre o corpo e o que se chama alma é tão grande que não é possível acreditar que sejam separados; 2- não há uma diferença qualitativa entre os homens e os animais; 3- o corpo humano é um conjunto de molas e engrenagens, e o que chamamos alma é um princípio também material, localizado no cérebro, que movimenta nosso organismo e nos habilita a pensar; 4- O pensamento, como o movimento, é uma simples função da matéria organizada.
Os trechos abaixo apresentam alguns argumentos do médico e filósofo para sustentar suas teses:
Que seria necessário a Canus Julius, a Sêneca ou a Petrônio para mudar sua intrepidez em covardia ou fraqueza? Uma obstrução no baço, no fígado ou na veia porta. Por quê? Porque a imaginação se obstrui junto com as vísceras e daí nascem todos os fenômenos singulares de afecção histérica e hipocondríaca. (...)
Sem os alimentos a alma enlanguesce, entra em furor e morre abatida. (...) Mas alimente o corpo, verta em seus tubos sucos vigorosos, líquidos fortes: então a alma, vigorosa como eles, se arma de coragem. (...)
A bela alma e a potente vontade só podem agir enquanto as disposições do corpo lhes, e seus gostos mudam com a idade e a febre! Devemos então nos admirar se os filósofos sempre tiveram em vista a saúde do corpo, para preservar a saúde da alma?
Com efeito, se o que pensa em meu cérebro não é uma parte desta víscera, e logo do corpo, por que, quando tranquilo em meu leito eu concebo o plano de uma obra, ou sigo um raciocínio abstrato, meu sangue se aquece? Porque a febre de meu espírito se passa para minhas veias?(...)
Dos animais ao homem, a transição não é violenta, como convirão os verdadeiros filósofos. (...) Um geômetra aprendeu a fazer demonstrações e cálculos como uma macaco a tirar ou colocar seu chapéu (...) Tudo é feito por signos e cada espécie compreende o que pode compreender. (...)
Mas desde que todas as faculdades da alma dependem de tal forma da própria organização do cérebro e de todo o corpo que elas não são senão esta própria organização; eis aí uma máquina bem esclarecida! As roldanas, alguns recursos a mais que nos animais mais perfeitos, e recebendo assim mais sangue, a própria razão é dada. (...)
A alma não é mais que um termo vazio do qual nós não temos a mínima idéia e do qual um bom espírito só deve se servir para nomear a parte que pensa em nós. Colocado o mínimo princípio de movimento, os corpos animados terão tudo o que lhes é preciso para se movimentar, sentir, pensar, arrepender-se e agir, em suma, no físico e no moral que dele depende.
(La METTRIE, J. O. L'homme machine. Éditions Bossard, 1921)
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