sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Origens da Violência

A violência existe desde os tempos primordiais e assumiu novas formas à medida que o homem construiu as sociedades. Inicialmente foi entendida como agressividade instintiva, gerada pelo esforço do homem para sobreviver na natureza. A organização das primeiras comunidades e, principalmente, a organização de um modo de pensar coerente, que deu origem às culturas, gerou também a tentativa de um processo de controle da agressividade natural do homem.

É no período em que se instauram os Estados modernos que se coloca, de modo mais radical, a pergunta sobre o que é o poder político, sua origem, natureza e significado, pergunta que traz consigo a reflexão sobre a violência, já que ela poderá ser utilizada como estratégia para a conquista e manutenção do poder, como afirma Maquiavel, em O Príncipe.

Entre os séculos XVI e XVIII, alguns intelectuais, a partir de perspectivas diferentes, entre eles, Hobbes e Locke, afirmavam, basicamente, que tanto o Estado quanto a sociedade se organizaram a partir de pactos ou contratos firmados entre os indivíduos para regulamentar o convívio social, superar as tensões e conflitos e instaurar a ordem política.

"Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. (...) porque assim como o mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real mas na conhecida disposição para tal durante todo o tempo em que não há garantia do contrário". ( HOBBES, T. Leviatã, p. 79-80.)

 Para Hobbes os homens, em estado de natureza, são iguais quanto às faculdades do corpo (força) e do espírito (inteligência) e quanto às esperanças de atingir seus fins, podendo desejar todas as coisas. Os fins são, basicamente, a própria conservação e a sobrevivência, mas também podem ser apenas o deleite. Dominado por suas paixões, desconhecendo as intenções e desejos dos outros em relação a si próprio, o homem vive solitário, em guarda, pronto a defender-se ou a atacar; quando desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, os homens se tornam inimigos e lutam entre si em defesa de seus interesses pessoais. Nessas circunstâncias, a melhor garantia contra a insegurança é antecipar-se às possíveis atitudes do outro, subjugando-o pela força e pela astúcia e ampliando, assim, o domínio sobre os outros, até conseguir a supremacia. Pode-se entender bem isto no ditado popular que diz “a melhor defesa é o ataque”. O que se tem, então, é um ambiente de tensão permanente: enquanto não se criam mecanismos capazes de conter a força e equilibrar os desejos, os homens se encontram predispostos à luta, na condição de guerra de todos
os homens contra todos os homens. Um conflito que não consiste unicamente na batalha, no enfrentamento ostensivo, mas numa atitude, tendência ou disposição constante para a luta. Enquanto não houver garan-
tias para a convivência o homem é o lobo do homem.


Hobbes acentua que, para evitar a destruição mútua e a situação de permanente insegurança e medo, os homens precisaram organizar-se em sociedade. Para tanto, renunciaram a seu direito a todas as coisas, à sua liberdade ilimitada, aceitando submeter-se a uma autoridade política. Na raiz do processo de formação social e política, portanto, estão a discórdia, o medo da morte, a desconfiança mútua, o desejo de paz e de uma vida confortável.


A reflexão política de Locke, escrita nos Dois Tratados sobre o Governo Civil, apresenta-se como uma teoria que justifica a existência da propriedade privada como um direito natural, que não pode ser violado. E a principal finalidade de se constituir um Estado e de se organizar um governo é a preservação da propriedade, da qual, o cidadão somente poderá ser alienado mediante adequada indenização no valor de mercado da região e sob a constatação legal da necessidade pública. Com o trabalho, o homem transforma a terra e dela se apropria, assim como de outros bens. Com o surgimento e ampliação das relações de troca e o advento do dinheiro, criam-se as condições de acumulação ilimitada de propriedade e de desigualdade entre os homens – os proprietários cidadãos de um lado e os não cidadãos de outro. A propriedade se transforma, dada a sua importância no pensamento liberal burguês, na garantia de afeição à coisa pública, pois o proprietário está interessado em sua boa gestão. Ou como registra a Enciclopédia: “Todo homem que possui no Estado é interessado no bem do Estado”.

A situação de risco e insegurança gerada pela falta de leis que estabeleçam o justo e o injusto e instaurem as condições para resolver as controvérsias causadas pela violação da propriedade leva os homens a se unirem. A instauração do Estado a partir do contrato social se faz com base no consentimento, para que o corpo político instituído exerça a função de garantir a vida, a liberdade e, principalmente, o direito natural à propriedade. As bases da teoria liberal estão assim colocadas.


DO CONTRATO SOCIAL

Jean-Jacques Rousseau constata a contradição que caracteriza a vida em sociedade para perguntar-se sobre a legitimidade da autoridade política.

O homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.

Se considerasse somente a força e o efeito que dela resulta, diria: “Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lhe arrebataram, ou tem ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la.” A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções. Trata-se, pois, de saber que convenções são essas. (...)

Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar um concerto.


Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos; sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue:

"Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece". (ROUSSEAU, 1973, p. 28-29 e 37-38)

Relação entre Violência e Poder

Nesse contexto, a violência define-se como uma ação que destrói ou modifica projetos com o uso da força, isto é, a violência caracteriza-se pela aplicação de procedimentos ostensivos ou ocultos que visam assegurar, moderar ou coibir uma ação do indivíduo ou grupo social. No âmbito das relações de poder, a força explícita nega a possibilidade de expressão da vontade individual ou coletiva por meio da palavra e do diálogo, além de sufocar os conflitos latentes que fundam a política. A violência isola os indivíduos, dissolve os grupos, gera mecanismos de controle, contribui para concentrar o poder. Aqui, poderíamos lançar mão da conhecida expressão “dividir para governar.”


A instituição do Estado moderno veio acompanhada por reflexões profundas sobre a estrutura interna do poder. Maquiavel, foi um dos primeiros a refletir sobre o poder estruturado no conflito, a partir dos interesses opostos que se organizam na sociedade:


"Há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião ... (...) Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis e estas da desordem que quase todos condenam irrefletidamente". (MAQUIAVEL, 1982, p. 31)
A partir de Maquiavel, a violência distingue-se do conflito, que está na raíz das relações de poder: a violência é entendida como o uso da força bruta, enquanto o conflito ou o dissenso, gerados pelo antagonismo de classes, são salutares na política e precisam ser reconhecidos por seus efeitos benéficos já que, do confronto e da desunião, nascem as boas leis. O bom governante é aquele que reconhece a realidade do conflito e busca o equilíbrio das forças em luta, organizando a ordem social e política.


No escrito de Maquiavel fica clara a diferença entre o dissenso, a partir do qual se produzem as leis, e a violência, caracterizada como a força que reprime e emudece. Enquanto o dissenso pressupõe o respeito às diferenças e, como tal, é o meio de expressão de novas idéias e de construção do espaço público, a força bruta anula o outro e se impõe como a única verdade. Maquiavel, porém, não descarta a violência como estratégia para a conquista e manutenção do poder, basta lembrar seus escritos sobre Cesar Bórgia ou Castruccio Castracani.


Na modernidade, a violência integra-se à natureza do poder na forma institucionalizada do Estado. Hegel acentuou o duplo movimento  pelo qual a contradição move a história que, enquanto processo, constitui-se no esforço em superar ou mesmo eliminar a violência. No âmbito político, é no sentido de controlar a violência que o Estado e o direito atuam: se uma violência pode ser anulada com outra violência, a força exercida no contexto jurídico legitima-se. A questão posta por Hegel assume novas formas no pensamento moderno e a teoria de Marx, ainda entendendo a violência como motor da história, acentua que o caráter violento das relações políticas resulta de uma violência mais radical, que dá origem a muitas outras formas de violência na sociedade e caracteriza-se pela exploração do homem e sua transformação em mercadoria.


Amplia-se, assim, o significado da violência e novas dimensões do conceito integram-se às antigas: pode-se entender por violência, ao lado de guerras, de genocídios, de torturas, de intolerâncias raciais e culturais e outros meios utilizados nas fundações de novos Estados no curso da história, também a miséria, a humilhação, o desrespeito aos idosos – já que não produzem mais – e às crianças, a fome, as injustiças sociais e todas as ações que, na sociedade capitalista, retiram do homem a sua dignidade e o reduz à coisa. À medida que o homem deixa de ser considerado como homem e seu valor reduz-se ao valor da sua força de trabalho, as guerras também assumem novas dimensões e significados: na sociedade capitalista, não são as perdas humanas que contam, mas os interesses específicos da indústria bélica; o lucro econômico e a renovação tecnológica gerada no curso dos conflitos. Na sociedade capitalista a violência é parte integrante da estrutura social e delimita a vida dos indivíduos. O ato de destruição do outro em sua constituição física e moral determina os limites de sociabilidade nos quais se integra a violência em todos os sentidos.


Na perspectiva do marxismo, a violência implícita nas relações sociais e políticas, geradas a partir dos antagomismos de classes, de raíz econômica, só pode ser cancelada ou superada por meio da revolução. As classes trabalhadoras, organizadas em sindicatos, partidos e outras instituições, teriam o grande objetivo de romper com todas as formas de dominação e lançar as bases de uma nova ordem social e política.


A organização dos trabalhadores no curso da história do marxismo, mostra, precisamente, o significado da violência revolucionária e a sua necessidade ante uma situação social que tem a violência inscrita em seu interior, como seu fundamento.

6 comentários:

  1. Maravilhoso texto! Achei o blog por acaso e considero uma grande descoberta, rs
    Parabéns! Mas porque nao posta regurlarmante como antes? Um abraço e obrigada (:

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  2. Muito bom, tava precisando ler algo do tipo...

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  3. muito bom isso,interessante ate o mundo alcançar a paz!

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  4. Adorei o texto. Teria como informar as referências bibliográficas?

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  5. Texto sensacional, extremamente didático, mas sem ser maçante. Instiga o aprofundamento do assunto quando deixa as citações e de onde elas vêm. Parabéns!

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