Platão constrói sua argumentação em torno da natureza imaterial e imortal da alma com um objetivo principal: vencer a morte, compreendendo que a alma é imortal. Sua concepção de alma está marcada pela tradição religiosa órfica grega, envolvendo idéias como a de purificação, ascese e da inferioridade do corpo em relação à alma. O propósito de Descartes (1596-1650) é mais preciso e limitado: ele quer construir um conhecimento verdadeiro, no qual só encontre lugar o que for indubitável. “Eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida” – escreve ele no Discurso do Método. Ora, ao buscar um conhecimento verdadeiro e seguro, nosso filósofo descobre que, ao contrário do que pensa a maior parte das pessoas, é mais fácil conhecer a alma do que o corpo. Ele vai demonstrar que estamos certos da existência de nossa alma, de nosso pensamento, antes de estarmos certos da existência dos corpos.
Vejamos, passo a passo, a construção da argumentação de Descartes, que se encontra tanto no Discurso do Método quando nas Meditações Metafísicas. Para acompanhar a exposição, o aluno deve consultar o extrato do texto das Meditações que se encontra no Roteiro de Atividade II – Corpo e Psiquismo: o dualismo.
1- Para descobrir o que pode ser considerado absolutamente certo e indubitável, Descartes se propõe a levar a dúvida ao seu extremo, examinando todas as suas opiniões, até as que lhe parecem mais evidentes. Fazendo isto, ele chega à conclusão que pode duvidar de coisas que antes lhe pareciam certas, como do fato de que as coisas que vê e sente sejam realmente tais como parecem. Isto porque, quando sonhamos, o que é imaginário nos parece real – ora, toda nossa vida poderia bem ser um sonho, sem que nós soubéssemos disso. O filósofo vai mais além: é possível mesmo pensar que nada de corpóreo exista realmente; nem o mundo, nem nenhum corpo, inclusive o seu próprio. Isto poderia realmente ocorrer, caso existisse um gênio maligno que colocasse em sua mente a impressão errônea de que há um mundo material. Descartes conclui a sua meditação: tenho que suspender meu juízo, a respeito de tudo o que me chega pela experiência e até da existência das coisas materiais (ou seja: não posso nem afirmar nem negar a realidade das coisas matérias). (ver Primeira Meditação).
2- Posso agora levantar a questão: eu, que duvido de tudo, que “me persuadi de que nada existe no mundo” posso duvidar de que eu exista? Já sei que posso duvidar da existência dos corpos e do meu próprio corpo – mas poderia também duvidar da minha existência? “Certamente não – escreve Descartes na Segunda Meditação – eu existia sem dúvida, já que me persuadi ou apenas pensei alguma coisa”. Mesmo que um gênio maligno me engane sobre tudo o mais, ele não pode enganar-me nisto: que eu existo toda vez que pensar alguma coisa. Ou, como, escreve noDiscurso do Método: “Penso, logo existo”. A experiência de pensar é a experiência de ser. (ver a Segunda Meditação, parágrafos 1 a 4 e a Quarta Parte do Discurso do Método).
3- Se coloquei em dúvida a existência dos corpos, não posso garantir que eu exista como corpo. Mas sei que existo – e existo porque penso, duvido, imagino que exista um mundo, tenho sensações, mesmo que os objetos que me parecem existir não existam. Posso estar enganado, portanto penso. E se penso, existo como ser que pensa: não posso duvidar de que “sou uma coisa pensante”. (Ver Segunda Meditação, parágrafos 5 a 9 e a Quarta Parte do Discurso do Método).
4- Esta “coisa pensante”, Descartes chamará de alma. E assim ele prova que a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo, porque se podemos duvidar da existência dos corpos (pois pode ser que os corpos dos quais temos idéias não existam), não podemos duvidar de que pensamos. Prova-se assim a existência da alma e que ela é absolutamente diferente do corpo: a alma é imaterial – pois mesmo quando não sabemos se a matéria existe, temos certeza de que a alma existe.
Apesar de usar a palavra “alma”, o que Descartes entende por ela é bem diferente da concepção do senso comum e da concepção platônica. Isto porque a alma em Descartes não tem nenhuma relação essencial com a vida: ela não vivifica o corpo, ao contrário, ela é puro pensamento, “substância pensante” (res cogitans). A concepção de alma de Descartes está mais próxima da “mente”, tal como a concebe a filosofia da mente contemporânea, referindo-se ao conteúdo representativo do pensamento, embora seja importante no sistema cartesiano provar que a alma é imaterial e imortal.
E os corpos? Existem realmente? A existência dos corpos – ou seja, da substância material (res extensa) que compõe o universo – será provada pelo filósofo, mas só depois de demonstrar a existência e a bondade de Deus. Descartes compreende todo universo material, incluindo aí os corpos vivos, a partir do modelo da máquina (é o chamado mecanicismo cartesiano, no qual o mundo se compõe de matéria e movimento). Os movimentos dos corpos vivos são gerados pelos “espíritos animais” – partes sutilíssimas de matéria que percorrem os nervos, fazendo com que o corpo responda a estímulos do exterior e também do interior. De modo que o movimento dos animais e todos os movimentos involuntários dos seres humanos são explicados somente levando em conta a matéria. (É de Descartes a primeira formulação de uma teoria dos movimentos reflexos). Os corpos são máquinas que funcionam por si, e não necessitam, para aquilo a que chamamos “vida”, da alma. Daí que, segundo o filósofo, os animais não têm alma (teoria dos “animais-máquina”). Já o homem é composto por duas substâncias distintas, o corpo e a alma; esta última, como vimos, define-se como pensamento (sensações, emoções, opiniões, idéias), e, no homem que é composto de corpo e alma, só é necessária para explicar os movimentos voluntários.
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