terça-feira, 20 de julho de 2010

A RAZÃO NA HISTÓRIA SEGUNDO HEGEL

“Se olharmos a história racionalmente, ela nos olhará racionalmente de volta” [1] Essa citação de Hegel expõe, em linhas gerais, o que o filósofo alemão compreende por Filosofia da História; ou seja, a observação refletida dos fatos históricos. O Idealismo Absoluto de Hegel não permite uma separação entre realidade e pensamento, o que não significa que a História deva ser, em vez da expressão mais fiel dos dados, uma composição por especulação filosófica. A conclusão que expõe a razão na história, verificada em seu olhar que dirige-se de volta ao filósofo, é o resultado da análise filosófica dos fatos expostos na História. Essa conclusão é única e necessária, e tem grande importância na Filosofia sistemática de Hegel, pois, o Espírito, que é razão, se autodesenvolve na História.

Para evitar tal confusão de significados, Hegel distingue, no capítulo 1 de sua Filosofia da História, três tipos de História. Resumidamente, são eles: 1. História original, que refere-se a uma passagem do fenômeno exterior para a representação intelectual, para a posteridade, realizada pelos historiadores que presenciaram o próprio momento histórico, 2. História refletida, que abrange diversas categorias de exposição que influenciam no conteúdo factual da História Original, culminando em um tipo de “História conceitual”, de certa forma semelhante à 3. História Filosófica, abordagem racional dos fatos históricos como todo que, por meio da contemplação e especulação sobre estes, desenvolve um autêntico pensamento histórico filosófico.

É relevante notar que a História, para Hegel, começa apenas com os “povos cientes de sua existência e vontade” [2]. Essa condição é realizada apenas na criação do Estado, o que implica dizer que agrupamentos de pessoas em famílias, tribos, comunidades ou demais alianças não constituem ainda a realização formal da Idéia presente no grupo. Para entender melhor o que Hegel quer dizer com “Idéia” e “Espírito” é necessário adentrar em seu sistema filosófico, o que possibilita também situar a História dentro dele. Da mesma forma, cabe esclarecer um conceito-chave para Hegel, a dialética, um movimento no qual a realidade está em um constante devir.

1. O SISTEMA FILOSÓFICO E BREVES CONCEITOS

A obra Fenomenologia do Espírito, de 1807, é a primeira publicação que abarca a concepção hegeliana da Filosofia como sistema, mas não se propõe a um detalhamento, tratando especialmente do aparecimento do Espírito no mundo. A obra foi projetada para ser uma introdução ao pensamento maduro de Hegel e comenta o sistema apenas em linhas gerais, especialmente no prefácio, deixando-o para ser exposto detalhadamente em livros subseqüentes. Essa pretensão se efetivou com a publicação, em 1817, da primeira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, obra concebida para auxiliar o professor Hegel em suas preleções universitárias, contendo o sistema em sua forma mais completa.

Não sendo o sistema filosófico o principal estudo da Fenomenologia, é possível afirmar que a exposição do movimento dialético é sua principal tarefa, ou, se não, ao menos a sua mais imponente intuição. A dialética hegeliana, que renova o sentido do termo anteriormente associado, principalmente, do método socrático de dialogar, é um processo no qual a realidade mesma se dá, num curso invariável de afirmação, negação e reafirmação. Em um parágrafo quase poético, Hegel define assim a dialética:

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se afirmar que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra.” [3]

É em coerência com esse movimento dialético que o Espírito se autocompreende no devir histórico. Espírito, em Hegel, não remete ao misticismo que o termo, em primeira vista, nos tenta a associar ao seu significado. O “Espírito”, ou “Geist”, no alemão original, compõe a totalidade, o real necessário já mediado pelo pensamento, a efetividade desprovida de contingência. No sistema, o domínio do Espírito representa a Idéia Absoluta voltando a si a partir de sua alteridade, a Natureza.

A Idéia, por sua vez, começa sua trajetória no domínio da Lógica, em que é apreendida racionalmente, desde o puro ser até a sua configuração absoluta. Essa apreensão ocorre por meio de uma construção intelectual do pensamento que pensa o pensamento, ou, por definição, da autêntica reflexão filosófica. A Idéia abandona o círculo da Lógica para se contrapor à Natureza, que, sendo antítese da Lógica, é ausência de pensamento. Daí, prosseguindo sua trajetória no movimento dialético, a Idéia chega ao âmbito do Espírito, onde se reencontra em si e para si, realizando-se efetivamente na forma absoluta.

Cada um dos três círculos dialéticos principais que formam o sistema filosófico se subdivide em diversos círculos, caracterizando o sistema como um círculo de círculos. O domínio do Espírito se divide em Espírito Subjetivo (Antropologia, Fenomenologia e Psicologia), Espírito Objetivo (Direito Abstrato, Moralidade, Eticidade) e Espírito Absoluto (Arte, Filosofia e Religião). A Eticidade, por sua vez, se subdivide em família, sociedade civil e Estado, âmbito no qual, enfim, está a História, como o estágio mais desenvolvido da tríade Direito público interno (tese), Direito público externo (antítese) e História Mundial (síntese).

2. O ESPÍRITO NA HISTÓRIA: LIBERDADE E AUTOCONSCIÊNCIA

O pensamento de Hegel sobre a História está exposto, em sua maior parte, na obra póstuma intitulada Introdução à Filosofia da História, uma das publicações compostas a partir das aulas ministradas pelo filósofo, baseadas em anotações suas e de alunos. Há também, em linhas gerais, uma exposição sobre a História registrada na obra Fundamentos da Filosofia do Direito, publicada pela primeira vez por Hegel, em 1821.

É impossível falar da História na filosofia hegeliana sem falar daquilo que se encontra no centro de todos os círculos de círculos de seu sistema: a liberdade. Em sua juventude, Hegel foi um dos idealistas alemães que viveram e comemoraram a Revolução Francesa. Posteriormente, com o aprimoramento de sua filosofia, o ideal revolucionário da liberdade revelou-se a essência verdadeira do Espírito. Sobre isso, em Filosofia da História, Hegel afirma que “como a substância da matéria é o peso, assim devemos dizer que a substância, a essência do Espírito, é a liberdade”.

O conceito de liberdade aqui usado não tem relação com o livre-arbítrio, ou com a ausência de restrições que o termo significa no pensamento liberal clássico. Hegel concebe a liberdade no sentido de harmonia entre o indivíduo e a comunidade, uma identificação entre os interesses particulares e o interesse geral presentes em um povo. Tal concepção vai contra a visão kantiana que, para definir liberdade, suprime todos os desejos humanos, como que numa condição para uma razão “livre” atuar. Hegel, como Kant, vê universalidade na razão, mas admite o elemento do desejo na constituição da liberdade, ao entendê-la presente na efetivação de uma sociedade em que “os indivíduos realmente escolham obedecer e apoiar, concordando genuinamente com seus princípios e verdadeiramente encontrando sua satisfação individual ao serem membros dele”.

O melhor exemplo para a compreensão do que Hegel considera uma sociedade onde o coletivo e o individual se harmonizam é a Grécia antiga, sociedade mais próxima da concepção de liberdade hegeliana, ainda que de forma imperfeita. Nela, o cidadão não opunha a vida privada à vida pública, ou, numa definição mais contextual, o cidadão se via tão intrinsecamente ligado a sua cidade que não distinguia os interesses dela de seus próprios interesses. Essa identificação representava uma integração do indivíduo no todo, que, para Hegel, é anterior e maior que suas partes.

Essa liberdade grega, porém, ainda não está completa. A ação dos cidadãos gregos, motivada pelo hábito, é causada ainda por uma força externa ao indivíduo, da mesma forma que ocorre numa sociedade despótica, por exemplo, e não se constituindo, por isso, em uma opção racional. Aqui se define um ponto de identificação entre Hegel e Kant: ambos acreditam que a consideração racional do dever-ser é necessária ao indivíduo como condição para a liberdade verdadeira. “A liberdade não pode ser alcançada sem o pensamento crítico e a reflexão” [4], e dessa forma Hegel se põe mais uma vez próximo da racionalidade iluminista.

Dando continuidade aos fatos históricos a partir da Grécia antiga, podemos observar o desenvolvimento da História segundo Hegel. A harmonia grega, após seu declínio, cedeu espaço à hegemonia romana. O Império Romano, novo portador do “Espírito do mundo”, é visto por Hegel como uma sociedade de frustração individual, em que os indivíduos não se identificavam com o todo, e, incapazes de se oporem ao despotismo que lhes rouba a realidade, buscavam refúgio fora dela.

A culminância dessa busca dos romanos se dá com a assimilação do Cristianismo. Essa assimilação, porém, não se encerra apenas nesse sentido. A Religião Cristã guarda em si o mérito de conscientizar sobre a existência espiritual dos indivíduos, promovendo um desenvolvimento da compreensão do indivíduo como pertencente de um todo, uma realidade espiritual que é maior que a realidade material. O Cristianismo, porém, especialmente da maneira como foi promovido na Idade Média, não contribuiu mais para a autoconsciência do que para a evidência da corrupção da Igreja Católica.

Sendo assim, é na Reforma Protestante que Hegel encontra o verdadeiro marco que consolida este realçamento do indivíduo participante do todo. Isso porque, com ela, todo ser humano passa a poder alcançar a sua própria salvação e, da mesma forma, entende Hegel, cada ser humano passa a poder reconhecer a sua natureza espiritual. A Reforma proporcionou ao indivíduo utilizar a razão na formulação de juízos próprios, e esse é um passo importante rumo a liberdade baseada na reflexão crítica racional.

Após a concretização da Reforma, o mundo seguiu rumo a consolidação da racionalidade crítica nos indivíduos, agora estimulados a essa nova maneira de agir. Mas não bastaria que apenas os indivíduos adotassem essa atitude racional, também as instituições deveriam ser racionalizadas, de forma que a harmonia entre sociedade e indivíduo se estabelecesse. Hegel prossegue a análise da História, e, já próximo à sua própria época, encontrou a busca pela racionalização das instituições na Revolução Francesa.

Porém, ao contrário do que se poderia esperar, Hegel não vê a Revolução de 1789 com o mesmo olhar festivo de sua juventude. A indefinição que durou anos, incluindo a instauração da tirania na fase do Terror, foi uma prova do uso impróprio de conceitos filosóficos que, na prática, não poderiam se ajustar à disposição específica de um povo. Houve uma “compreensão errônea do papel da razão, que não deveria ser aplicada de forma isolada da comunidade existente e do povo que a forjou” [5].

A Revolução, apesar de falha, não é pouco importante. Os ideais tomados por ela, em que se destacam a razão e a liberdade, são inerentes a uma realidade desenvolvida, e compõem mesmo a essência e verdade última do Espírito. A propagação dos ideais revolucionários franceses pelo mundo é um fator destacado na História. Napoleão, por exemplo, tendo invadido a Alemanha, foi considerado por Hegel “a Razão a cavalo”, o que favoreceu o desenvolvimento do Espírito no povo germânico.

3. O ESPÍRITO QUE SE MOVE

Hegel, na obra Filosofia da História, afirma que “a liberdade consiste somente no saber e querer objetos universais, substanciais, como o direito e a lei, produzindo uma realidade que lhes é conforme: o Estado” [6]. O filósofo alemão não vê a possibilidade da realização da liberdade além dos limites de um Estado. Ao contrário, entende que a Idéia do Estado está presente em qualquer comunidade organizada, e sua efetivação, no Estado realizado efetivamente, permite ao homem exercitar a liberdade.

O Estado, portanto, é em si um Espírito, que, no âmbito mundial, está como um indivíduo estaria em um suposto estado de natureza. Um povo que ainda não é Estado, ou seja, ainda não objetivou a Idéia presente em sua organização, não representa uma potência absoluta sobre a Terra. A soberania, quando alcançada, existe em função de seu bem-próprio, o que não pode ser modificado, por exemplo, em um tratado internacional entre nações.

A partir disso, Hegel vê com incredulidade o fim de conflitos entre nações. Da mesma forma, justifica o domínio mundial por um povo específico como o próprio desenvolvimento do Espírito do Mundo. Hegel chama esses povos de “povos histórico-mundiais”. Dentro dessa concepção, o filósofo identifica ainda os “indivíduos histórico-mundiais”, indivíduos que, por sua ação, realizam a Idéia do Espírito Absoluto no mundo. Ambos os agentes, povos e indivíduos, são instrumentos inconsciente do Espírito para a sua realização, e promovem o seu desenvolvimento para a liberdade e a autoconsciência. Resumidamente, neles se dá o verdadeiro devir histórico.


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