domingo, 18 de julho de 2010

Liberdade em sentido político e em sentido metafísico

O conceito de liberdade presta-se frequentemente a uma confusão decorrente do seu uso em sentido político e do seu uso em sentido metafísico.

Quando usamos o termo em sentido metafísico estamos geralmente a referir-nos à capacidade de
autodeterminação dos agentes. O problema do livre-arbítrio consiste em saber como compatibilizar a crença de que as nossas ações, enquanto acontecimentos espácio-temporais, estão sujeitas às mesmas leis determinísticas que regem o mundo com a crença de que somos livres, capazes de autodeterminação e responsáveis por essas ações. Este problema é claramente um problema metafísico – trata-se de saber como se integram as nossas ações no mundo.
Mas a liberdade em sentido político traduz um ideal que preside à determinação dos deveres e direitos dos indivíduos enquanto membros de uma sociedade. É neste sentido que abordaremos agora o conceito de liberdade.

Liberdade negativa e liberdade positiva

Segundo Isaiah Berlin (no seu ensaio "Dois Conceitos de Liberdade"), existem ainda duas acepções em que podemos falar de liberdade:
Liberdade Negativa - a liberdade em acepçã o negativa ou restrita consiste na ausência de coerção, isto é, numa ausência de obstáculos ou de imposições. Nesta acepção, o indivíduo diz-se «livre» se não for impedido de agir como deseja, ou se não for obrigado a agir contra a sua vontade. A justificação para que o estado restrinja coercivamente a liberdade dos indivíduos assenta no reconhecimento social da necessidade de protecção dos mais fracos. Presume-se que sem um mecanismo regulador, imperaria certamente a «lei do mais forte», e que isso é injusto. No entanto, um filósofo como John Stuart Mill defendeu, no seu ensaio Da Liberdade, que os indivíduos devem poder conduzir as suas próprias «experiências de vida» sem interferência do estado, desde que ninguém seja por isso prejudicado. No entanto, como a própria ideia de prejuízo alheio se revela profundamente imprecisa, a coerção da liberdade volta a estar justificada por razões práticas. Assiste-se aqui a um confronto entre uma posição consequencialista (a de Mill) e uma posição deontológica (a que justifica a acção coerciva do estado, que terá o dever de proteger os mais fracos).

Liberdade Positiva - a liberdade em acepção positiva é entendida como uma libertação, emancipação ou autonomização do indivíduo face às forças sociais e culturais que o impedem de se realizar plenamente.

"[...] Por exemplo, se um alcoólico for convencido, contra os seus melhores interesses, a gastar todo o seu dinheiro numa pândega, representa esta atitude o exercício da sua liberdade? Intuitivamente, parece implausível, sobretudo se nos momentos em que está sóbrio o alcoólico se arrepende dessas patuscadas. Pelo contrário, temos tendência para pensar que o alcoólico estava sob efeito do álcool: um escravo dos impulsos. Apesar de (do ponto de vista da liberdade negativa) não existir constrangimento, no ponto de vista da liberdade positiva o alcoólico não é genuinamente livre". Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, 1998, p.124.

Esta passagem torna clara a distinção das duas acepções de liberdade, mas contém uma sugestão
ainda mais forte: a tese de que a liberdade positiva depende crucialmente da coerção da liberdade negativa. De facto, o indivíduo que não seja impedido de beber, é livre na acepção negativa; mas a sua condição de alcoólico compromete a sua realização plena, isto é, a sua liberdade positiva. O mesmo acontece se não impedirmos os indivíduos de matar, roubar e violentar – actos que impedem a realização plena das suas vítimas; ou se não os obrigarmos a pagar os impostos, com os quais o estado deve promover a realização igualitária dos cidadãos. Parece, pois, partir-se do pressuposto de que sem qualquer coerção os indivíduos prejudicariam livremente os outros (ou a si mesmos) em função dos seus próprios interesses (doutrina do egoísmo psicológico), o que justifica a coerção da liberdade negativa. No entanto, sendo o estado o agente desta coerção, muitos críticos salientam que, em nome de se garantir a liberdade positiva, geram-se abusos dos mecanismos coercivos das liberdades individuais. Esta objecção é confirmada por inúmeros exemplos históricos e conduz-nos ao problema da justificação da coerção.

Vamos analisar agora um caso particular de coerção – a privação da liberdade. Outros exemplos
seriam o trabalho comunitário forçado e a pena capital.

Formulação do problema da privação da liberdade

A par com o corpo das leis pelas quais se regem, as sociedades dispõem de sistemas penais que descrevem os castigos a aplicar nos casos de infracção. A privação da liberdade constitui a forma de castigo mais vulgarmente aplicada. A par com os cemitérios, as prisões encontram-se um pouco por todo o mundo, mesmo naqueles países onde faltam escolas ou hospitais.
Formulação – o problema da privação da liberdade consiste em saber que razões há que justifiquem a privação da liberdade como forma de castigo.

Privação da liberdade – argumentos a favor e contra

A favor - Existem quatro tipos de argumentos a favor da privação da liberdade. O primeiro deles é um argumento deontológico; os restantes são sobretudo argumentos consequencialistas. Vejamo-los acompanhados das objecções que classicamente lhes são feitas.
Argumento da Retribuição – de acordo com este argumento, a sociedade tem o dever de retribuir o mal causado pelo infractor da lei, pois ele próprio causou mal à sociedade. Aqueles que violam a lei merecem ser punidos e a subtracção da liberdade é, argumentavelmente, o meio mais eficaz para concretizar essa punição.

Objecções - Aos retributivistas não importam as consequências do próprio castigo – não está sob
consideração se a privação da liberdade é benéfica para a sociedade ou para o criminoso. O castigo é um "pagamento na mesma moeda". O problema é que esta medida pode acarretar consequências mais negativas para a sociedade – por exemplo, tendo que se gastar muito dinheiro nos estabelecimentos de reclusão; além disso, nem sempre é claro o que seria uma retribuição "na mesma moeda" - obrigar-se-ia um chantagista a cumprir uma pena de seis meses sob chantagem? Um violador a ser violado? O que é uma retribuição justa?

Argumento da Dissuasão – a privação da liberdade pode justificar-se como medida de dissuasão.
Sabendo que o castigo existe, tanto os actuais como os potenciais infractores da lei sentir-se-ão desencorajados a violá-la. E, assim, as infracções à lei diminuem. É esta ideia que subjaz às chamadas "penas exemplares".

Objecções – uma objecção frequente a este tipo de argumento é que, dando excessiva importância ao objectivo de dissuadir, pessoas inocentes (ou mesmo culpadas) incorrem no risco de ser castigadas injustamente. Se a dissuasão do crime se torna um fim obsessivo, pode mais facilmente ter lugar a aplicação de penas desproporcionadas, e isso é injusto.

Outra objecção importante consiste em sublinhar que a dissuasão é completamente ineficaz. Este
contra-argumento factual sublinha que, por exemplo, nos países em que vigora a pena de prisão
perpétua (e mesmo a pena capital) continuam a existir criminosos; e naqueles países em que tais
penas foram abolidas a criminalidade não aumentou.

Argumento da Protecção Social - a privação da liberdade pode justificar-se também como medida de protecção social. Há que recolher os criminosos às prisões para proteger os restantes cidadãos das suas possíveis e prováveis reincidências.

Objecções – uma primeira objecção baseia-se na ideia de que devemos diferenciar os criminosos:
há, de facto, pessoas que reincidem na infracção à lei – caso dos condutores portugueses; mas há
pessoas que infringem ocasionalmente a lei – caso do marido que assassina o amante e a esposa
quando os apanha em flagrante delito. Ora, é inverosímil que este infeliz constitua um verdadeiro
perigo para a sociedade. Em casos semelhantes, o argumento da protecção da sociedade não colhe. Uma outra objecção sublinha que a privação da liberdade para protecção da sociedade é uma medida com eficácia a prazo, e até perigosa. De facto, ao encarcerarmos alguém estamos a pô-lo em contato com grandes criminosos; como a sua pena tem uma duração limitada, o castigado constituirá uma ainda maior ameaça para a sociedade ao sair do cá rcere. As únicas soluções para evitar isto seriam o isolamento completo ou o encarceramento perpétuo, claramente desproporcionadas.

Argumento da Reabilitação – um último argumento consiste em defender que o castigo incentiva
reabilitação. O castigado pode reflectir sobre os malefícios da sua acção e tender a desejar reabilitar-se aos olhos da sociedade.

Objecções – em primeiro lugar, é claro que nem todos os criminosos necessitam de reabilitação,
como acontece com o homicida passional; em segundo lugar, há criminosos que resistem a qualquer iniciativa de reabilitação; em terceiro lugar, e mais importante, como a privação da liberdade é vivida nos estabelecimentos de reclusão e como estes raramente proporcionam as condições adequadas para uma reabilitação psicológica, profissional ou social, a medida assim justificada revelase completamente ineficaz.

Apesar de a privação da liberdade poder ser criticada sob qualquer justificação, as sociedades e
estados não a dispensam, acentuando variavelmente a função que aquela medida visa cumprir. Embora psicologicamente reconfortante para a sociedade, a subtracção da liberdade aos infractores não parece, por si, poder resolver as carências e problemas que estão na base das violações da lei. Constitui, pois, um desafio ao filósofo político encontrar mais e melhores argumentos que a justifiquem, ou então mais e melhores alternativas que a permitam evitar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário