quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 4
A existência ética
Senso moral e consciência moral
Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de
luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de
pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos
piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando
vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos
responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a
fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.
Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção
forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que,
depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo
e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso
moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas
palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo,
mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e
dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais
sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.
Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres
humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio,
torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente
foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece
impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras
pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às
custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso
moral.
Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como
situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida,
com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a
máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no
sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-
la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que
fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda
não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje
apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se
responsabilizar plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho.
Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas
famílias (se as tiverem).
Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar
o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para
sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia
não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com
ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para
nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente,
recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa
irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá
sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego,
mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com
fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela
correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido.
Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará
traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo
com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode
ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou
deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela
decisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e,
conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve
falar ou calar?
Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e
pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas
dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a
fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará
um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá
silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para
a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao
homicídio? Que fazer?
Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre
em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas
nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois
exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os
outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências
delas, porque somos responsáveis por nossas opções.
Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral
referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade,
generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha,
culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que
conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os
conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais
profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as
ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal,
também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de
afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes
conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.
O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções,
decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem
respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem
como parte de nossa vida intersubjetiva.

Juízo de fato e de valor

Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento
constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e
avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.
Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são.
Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de
fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre
coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na
religião.
Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos,
sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus,
desejáveis ou indesejáveis.
Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que
determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos
comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações
segundo o critério do correto e do incorreto.
Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos
éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos
devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também
que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos
do ponto de vista moral.
Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida
cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e
negativos que devem respeitar ou detestar.
Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a
Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e
processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de
nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos
necessários podemos constatar e explicar.
Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si
mesmos e suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos,
intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores.
Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos
com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma
relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de
contemplação.
Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral
e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles e neles,
como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para
garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de
geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da
existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser
criação histórico-cultural.

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