quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uma ética nietzschiana
Dossiê: Genealogia e transvaloração dos valores morais para naturalizá-los

Scarlett Marton
Ousado, irreverente, rebelde, é sobretudo dessa maneira que Nietzsche é conhecido entre nós. Filosofando a golpes de martelo, este pensador, um dos mais controvertidos de nosso tempo, não hesita em seus escritos em desafiar normas. Tanto é que ele vem questionar nossa maneira habitual de proceder, nosso modo costumeiro de agir. Ao criticar de forma contundente os valores que norteiam nossa conduta, quer mostrar que, ao contrário do que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da humanidade, nem o mal para a sua degeneração.
Diagnosticar os valores estabelecidos é um dos propósitos que Nietzsche se coloca nos textos a partir de Assim Falava Zaratustra. Introduzindo a noção de valor, ele opera uma subversão crítica: põe de imediato a questão do valor dos valores e, ao fazê-lo, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se nunca se colocou em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, se nunca se hesitou em atribuir ao homem “bom” um valor superior ao do “mau”, é porque se consideraram os valores essenciais, imutáveis, eternos.
Mas, ao contrário do que sempre se acreditou, Nietzsche quer evidenciar que os valores “bem” e “mal” têm uma proveniência e uma história. Eles não existiram desde sempre, não são obra de uma divindade ou de um princípio superior. “Humanos, demasiado humanos”, em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados; por isso mesmo, surgem, passam por transformações e podem vir a desaparecer, dando lugar a novos valores.

Na Grécia antiga dos tempos homéricos, a aristocracia guerreira concebeu espontaneamente o princípio “bom”, que atribuiu a si mesma; só depois criou a ideia de “ruim”, como “uma pálida imagem-contraste”, para designar os que não pertenciam à casta, os que não eram dignos de serem inimigos. Com o judaísmo e o cristianismo, os sacerdotes converteram a preeminência política em preeminência espiritual. Enquanto valor aristocrático, “bom” se identificava a nobre, belo, feliz; tornando-se valor religioso, passou a equivaler a pobre, miserável, impotente, sofredor, piedoso, necessitado, enfermo. A transformação por que então passaram os valores morais foi fruto do ressentimento de homens fracos, que, não podendo lutar contra os mais fortes, deles tentaram vingar-se através desse artifício.
Nesse sentido, a religião cristã, desde o seu apareci-?mento, desempenhou papel de extrema relevância. Criação do apóstolo Paulo, ela veio impor o reino dos fracos e dos oprimidos. Se Nietzsche se dedica a criticá-la de forma radical, é antes de mais nada porque a vê como um sintoma da degeneração dos impulsos vitais. Produto do ódio e desejo de vingança daqueles a quem não é dado reagir e só resta res-sentir, ela seria a expressão mesma da decadência.
Perspectivismo, não relativismo
Ora, ao apontar as diferentes perspectivas a partir das quais surgem os valores, Nietzsche conta desmontar o mecanismo insidioso que impedia de questioná-los. Não vacila em levar à mesa de dissecação o ressentimento, a culpa e a má consciência, o altruísmo, o amor ao próximo e as chamadas virtudes cristãs. Com um agudo sentido de análise, empenha-se em desvendar o funcionamento secreto das paixões do homem.
É em Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort que Nietzsche se inspira em suas reflexões acerca da conduta humana. É neles, ao lado do escritor Stendhal, que encontra alimento para as suas reflexões morais. Os chamados moralistas franceses, em vez de procurar pautar o comportamento do homem por alguma lei divina ou princípio superior, propõem-se estudar o ser humano tal como ele é. Sem se preocupar com a natureza humana universal ou a misericórdia de Deus que viria salvá-la, querem tomar por objeto de estudo o homem, sem recorrer à metafísica ou à teologia.
A obra que esses pensadores empreendem consiste, de modo geral, numa análise sutil dos móveis do homem. Embora quase todos cuidem do modo de agir individual, sempre o concebem como determinado ou corrompido por preconceitos da sociabilidade. No século 17, Pascal dedica-se a fazer ver que o homem sempre se ilude a respeito de si mesmo. É por desconhecer-se que se imagina grande; é para evitar o espetáculo da própria condição que recorre a dissimulações. Observa como as conveniências sociais transformam seus móveis verdadeiros e, sob a máscara da vaidade, descobre seus apetites inconfessáveis. E, com muita propriedade, escreve nos Pensamentos: “Divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além” (fragmento 294). No século 18, Chamfort amplia o âmbito da pesquisa e chega a encarar a moralidade social como englobando ou alterando a dos indivíduos; no século 19, Stendhal é o primeiro que, pela observação comparada dos costumes de diversos povos, acredita atingir fatos gerais.
Assim como esses pensadores franceses que tanto admira, Nietzsche quer fazer ver que os valores não são universais. Mas nem por isso resvala no relativismo. Insiste, ao contrário, que não basta mostrar que os valores surgiram a partir de ângulos de visão diferentes. Não basta relacioná-los com as perspectivas que os engendraram; é preciso ainda investigar que valor norteou essas perspectivas ao criarem valores.



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