domingo, 15 de dezembro de 2013

Textos para Estudos Independentes 1° , 2° e 3° ano.

Escola Estadual Deputado Renato Azeredo
Professor: Rodrigo Souza
Filosofia
A ideologia
Marilena Chauí
A alienação se exprime numa “teoria” do conhecimento espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida. Um exemplo desse senso comum aparece no caso da “explicação” da pobreza, em que o pobre é pobre por sua própria culpa (preguiça, ignorância) ou por vontade divina ou por inferioridade natural. Esse senso comum social, na verdade, é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade, feita pelos pensadores ou intelectuais da sociedade – sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores, jornalistas, artistas -, que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da classe a que pertencem e que é a classe dominante de uma sociedade. Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as idéias de uma das classes sociais – a dominante e dirigente – tornam-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade.
A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres  humanos. Indivisão: apesar da divisão social das classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da idéia de “humanidade”, ou da idéia de “nação” e “pátria”, ou da idéia de “raça”, etc. Diferenças naturais: somos levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da inteligência, da força de vontade maior ou menor, etc.
A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender transformá-las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as idéias.
Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, sabemos que isso não acontece de fato: as crianças de rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em escolas particulares, pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas; os negros e índios são discriminados como inferiores; os homossexuais são perseguidos como pervertidos, etc.

A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor, pagar as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos, sem considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que outros. A função da ideologia é impedir-nos de pensar nessas coisas.


Escola Estadual Deputado Renato Azeredo                                               Professor: Rodrigo Souza                                                                      Filosofia
Para arquitetar uma democracia...
Professor: Rodrigo dos Santos Manzano

"Política, futebol e Religião não se discutem”; “Não gosto de Política”; “É tudo igual, as mesmas caras e nenhuma proposta nova”. Em ano de eleição, o Brasil volta a ouvir de seus eleitores lugares-comuns como os dessas frases, que expressam, por um lado, o cansaço em relação aos escândalos por corrupção, sempre presentes nos noticiários, e, por outro, que denotam a falta de interesse e de cultura política que possibilitem uma ação concreta diante da indignação. Essa falta de informação e de cultura política, em parte resultados de uma Educação cada vez mais sucateada e do descrédito nos políticos – o que leva a uma sensação de “homogeneização corrupta” que envolve as mais variadas siglas partidárias, ou seja, a ideia de que todos são ladrões e vão continuar repetindo os erros de seus antecessores, e que, portanto, nada vai mudar –, a centralização das atividades administrativas e das decisões políticas em palácios fechados e inatingíveis, mesmo que somente ao imaginário da população, fazem desta uma esfera da vida que pouco ou nada diz à sociedade brasileira no dia a dia. As frases supracitadas revelam também o desinteresse do brasileiro, de modo geral, em relação às questões que envolvem a participação política. O cenário político brasileiro e o que cada termo do vocabulário político realmente significa demonstram o enorme disparate entre o real e o ideal, o que é e o que deveria ser, o modo como se faz a administração da “coisa pública” no Brasil.
É preciso pensar na crítica ao individualismo para que os homens possam sair do caos no qual nossa época mergulha. Uma das faces desse caos é, em nosso país, a grande descrença e a falta de norte para os brasileiros em relação às instituições políticas, principalmente aos candidatos que apresentam novamente seus mesmos rostos e seus “projetos” que, como por milagre, resolveriam todos os problemas que assolam a nação. Somado a isso, o verdadeiro show do chamado “horário eleitoral gratuito” torna o processo eleitoral um palco de stand up comedy. E como conciliar o individualismo que assola a era atual e a política brasileira?
O individualismo está presente naqueles que se dizem “representantes dos anseios da população”, os próprios políticos. Ao cometerem atos ilícitos com dinheiro público, não estão considerando o mal que fazem àqueles que não terão esses recursos à disposição. Porém, o individualismo não atinge somente candidatos a cargos administrativos, mas também a sociedade brasileira. Alienados e desinteressados, em parte somos todos vítimas de um processo que nos fez ficar à margem da construção de nossa história política. O brasileiro está extremamente imerso nesse cenário de “apolitismo”. Ele o internaliza e acredita ser mais certo ficar distante desse processo.
 Mas afinal, o que é a Política? O que é a democracia? O que é a República? Palavras como essas são muito próximas de nós. Na verdade, a Política deve prestar um serviço à sociedade, e não um desserviço, como vemos muitas vezes na cultura brasileira. Porém, a ausência ou a deturpação da ideia de autoridade, de participação política, de fiscalização tornam o cenário lastimável. O individualismo impede que as pessoas se unam para lutar por condições melhores e para cobrar de seus representantes as ações para as quais foram eleitos. Nesse quadro, o filósofo grego Aristóteles, um dos principais pensadores das instituições políticas e das melhores maneiras de administrar a pólis grega.


Ética, moral e sociedade
Em seu viver, o ser humano buscar tornar habitável a parte do mundo que forma para si na totalidade do mundo natural. Dividir a espaços, estabelecer maneiras constantes de agir e criar hábitos fazem parte desse processo de habitar humanamente o mundo.

O termo ética tem dupla origem no grego: êthos, com eta inicial, significa morada, abrigo permanente , refúgio; com épsilon inicial, significa o conjunto de costumes e normas de conduta destinado a ordenar a morada dos seres humanos e os modos de convivência**. Não encontramos pronta a nossa morada, mas devemos projetá-la, construí-la e fazer dela um lugar protegido e seguro. No latim, a palavra correspondente a ética é morale (demos, moris), que passou para o português, como sentido de “conjunto de regras de conduta consideradas válida, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada” ***.

Também é denominada Ética a parte da filosofia que faz a reflexão crítica sobre a dimensão moral do comportamento humano. Cabe a ela investigar os fundamentos dos valores, problematizá-los , buscar sua consistência. Assim como a filosofia política não se confunde com a política, ética se distingue da moral. Enquanto esta se define como um conjunto de normas e prescrições, a ética procura os fundamentos dessas normas e prescrições.

Todos os humanos constroem para si moradas, mas não o fazem da mesma forma. Os hábitos e costumes variam no espaço e no tempo; os valores não são os mesmos em toda todas as sociedades indistintamente. Cada grupo social tem seu jeito de viver: os indígenas, os esquimós e os brasileiros dos centros urbanos ocupam os espaços, interagem com a natureza e organizam a convivência social de formas diversas. Dentro de uma mesma cultura, os papéis sociais – que o pai deve ser, por exemplo – têm características diferentes nos diversos momentos históricos. Assim, todas as sociedades, cada qual a seu modo, criam sua morada: todas são éticas, mas cada uma tem sua moral, ou seja, seu conjunto de valores e normas de conduta.
A casa podemos designar a ética. Os estilos de casa e hábitos dentro da casa chamaremos de morais. A ética se dá sempre no singular; é a exigência do ser humano de habitar humanamente seu mundo. As morais se dão no plural, porque as formas e modos de habitar o mundo dão múltiplas e variáveis****.
Somente os homens e as mulheres estabelecem normas de conduta, porque somente os seres humanos, nas suas relações uns com os outros, atribuem sentido e valor às próprias ações. A ética e a moral fazem parte, portanto, do domínio da cultura, do dever ser, daquilo que torna humano o homem.

1) De acordo com sua leitura do texto acima, e de seus conhecimentos sobre Ética e Moral, elabore um texto critico com no mínimo 15 linhas a partir da seguinte citação:

 “A casa podemos designar a ética. Os estilos de casa e hábitos dentro da casa chamaremos de morais. A ética se dá sempre no singular; é a exigência do ser humano de habitar humanamente seu mundo. As morais se dão no plural, porque as formas e modos de habitar o mundo dão múltiplas e variáveis”


Traços gerais da Ideologia segundo Marilena Chauí

Anterioridade — a ideologia funciona como um conjunto de ideias, normas e valores destinados a fixar e prescrever, de antemão, os modos de pensar, sentir e agir das pessoas. Em razão de sua anterioridade, a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a história e a prática na qual cada pessoa se insere, vive e produz.                                                                                                                                                                                Generalização — a ideologia tem como finalidade produzir um consenso coletivo, um senso comum (aceitação geral) em torno de certas teses e valores. Com isso, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou classes dominantes. O "bem de alguns" é difundido como se fosse o "bem comum". Além disso, a generalização visa ocultar a origem dos interesses sociais específicos que nascem da divisão da sociedade em classes.                                                                                    Lacuna — a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, de omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas "verdades" devem parecer naturais, plenamente justificadas, "válidas para todos os homens e para todo o sempre".                                                                                                                                                                              A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois sendo missão das ideologias dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria.                                                                                                                                                                        Vejamos um exemplo de utilização de um conceito ideológico: "querer é poder".                               
 Não há dúvidas de que, para exercer o poder, toda pessoa deve antes querer fazê-lo. Mas basta apenas querer para se ter poder?                                                                                                                           Muitas pessoas consideradas otimistas afirmam que para se vencer na vida e ganhar dinheiro é preciso muita força de vontade, trabalho e garra. É preciso, enfim, "muito querer". No entanto, se essa fórmula trouxe bons resultados para algumas pessoas, não se pode deduzir que ela dará certo para todas. Na sociedade dividida em classes, para cada um que vence há necessariamente muitos derrotados. O sucesso depende do fracasso de outros.        A generalização da afirmativa "querer é poder" oculta o peso enorme das desigualdades sociais que separam os homens em termos de alimentação, educação, trabalho e capital. Enquanto uns lutam a vida inteira para sobreviver, outros, por herança, já nascem em "berço de ouro".                                                                                                        
A ideologia do "querer é poder" costuma ser utilizada para explicar as desigualdades entre os homens, passando longe da problemática da opressão social. Considerando o fato de que a maioria das pessoas nascidas pobres não consegue prosperar na vida, tal ideologia aponta como causa do fracasso dessas pessoas a ausência de garra, de força de vontade, de querer. Assim, pretende convencer os fracassados de que eles são os únicos culpados pelo próprio fracasso.                                                                                                                                                                                              
 O que essa ideologia não explica é como um homem do povo pode desenvolver um querer, um projeto de prosperidade, se, desde a infância, está condenado à subnutrição, à falta de escola, à moradia precária, ao desamparo educacional e dos serviços de saúde e à ausência de perspectiva no trabalho.                                                       
O que dissemos contra a ideologia do "querer é poder" não elimina a importância da chamada "força de vontade" na realização de nossos objetivos. Mas não se pode fazer do fator vontade pessoal a única força capaz de nos levar à conquista dos nossos desejos. Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.                                                                                                                                                             
 A realidade histórico-social exerce grande influência sobre a vida e a vontade das pessoas. Assim, o problema da força de vontade não é uma simples questão de qualidade subjetiva, algo inato, dos indivíduos. A vontade é motivada ou bloqueada também pelo meio e as circunstâncias em que vivem as pessoas.                                      
Só uma reflexão ampla dos problemas que envolvem a formação da vontade nos ajudarão a compreender por que alguns têm força de vontade enquanto muitos têm uma vontade sem força.

Processo de Alienação
O conceito de alienação é vasto e pode englobar várias maneiras e formas de pensamento. O primeiro filosofo a abordar esse tema foi Karl Marx. Isto está explicito em dois de seus trabalhos que respectivamente são: Manuscritos econômicos filosóficos (1844) e Elementos para a critica econômica política (1857), ambos enfatizam que o sistema capitalista é um sistema extremamente explorador e injusto, principalmente com as classes menos favorecidas economicamente, como a classe do proletariado sente na pele a todo momento essa injustiça.

Na idade média o artesão detinha todo o conhecimento da fabricação do produto, com o surgimento da industrialização o operário era apto e exercer e trabalhar em uma só função, ou seja, em uma parte da fabricação do produto, sendo assim o trabalhador não participando de todo o processo da produção não seria necessário entender o que estaria ajudando a produzir, tinha apenas que cumprir sua parte na linha de montagem. Peguemos o exemplo do fabricante de cordas para violões, antes do surgimento do capitalismo e suas grandes fabricas, quem fabricava as cordas conseqüentemente fabricava também o violão, afinava-o e tocava o instrumento muito bem. Com essa individualização na fabricação do instrumento, o operário fabricava as cordas enquanto outro fabricava o corpo do violão e o outro já fabricava o braço do instrumento, outro trabalhador é pago só para afiná-lo e assim por diante. Assim não teria como obrigação todos os operários saberem tocar violão. Outro exemplo mais recente acontece com o operário metalúrgico que coloca portas nos carros produzidos na grandes montadoras, o mesmo passa todo o período produtivo de sua vida montando automóveis para chegar a conclusão final de que nunca possuirá o bem que ajuda a fabricar.

A esse exemplo pode-se encaixar o que Karl Marx chama de “objeto se sobrepondo ao sujeito”, em outras palavras, é a alienação da negação, pois Marx defendia a idéia que o individuo deveria se impor diante do objeto e não o contrário. A partir do momento que o sujeito nega a negação Marx da o nome desse acontecimento de “desalienação”.

A produção depende do consumo e o consumo depende da produção, esse modo é cíclico, quando se é consumido o que é produzido e não se produz mais, o ciclo se fecha. Esse ciclo pode ser definido como ciclo de alienação, porém em uma sociedade capitalista isso é impossível de acontecer, pois o que se é produzido tem que por obrigação ser consumido em um prazo mais rápido possível, para que se produza sempre mais e mais explorando o proletariado, que toma corpo quando por exemplo o patrão não paga o salário devido e não cumpre com os direitos trabalhistas. Sem essa exploração a elite não acumula capital e conseqüentemente não obtém lucros e assim não pode continuar o processo de alienação.
Marx também trabalha a alienação humana através do fetichismo, onde o individuo começa a valorizar mais os bens materiais como automóveis, mansões, etc. e deixa-se de admirar atos bondosos ou a inteligência do sujeito e passa a dar mais valor ao capital que o sujeito tem, sendo o dinheiro o maior desses fetichismos, pois com o dinheiro se é capaz de comprar todos os bens matérias.

A religião também tem grande poder de alienar, pois explica fatos que são cientificamente inexplicáveis. Certa vez Marx citou em seu livro Manuscritos econômicos filosóficos, (paginas 45-46): “A religião é o suspiro do oprimido, é o ópio do povo”.
Segundo o filosofo, esse modo de alienação que as classes dominantes exercem sobre as classes dominadas só terá seu fim decretado com a chegada do comunismo entre as classes econômicas.
Fonte: http://marcilohistoricizando.blogspot.com.br

Meditação Primeira: Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida                 
§ 1.Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la. (...)”
Meditação Segunda: Da Natureza do Espírito Humano; e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do que o Corpo
§ 3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me representa: penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimentos, e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
§ 4. Mas, que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse algum sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não posso existir sem eles? Mas, eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou em que a concebo em meu espírito.(...)
§ 9. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam? Não sou eu próprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto, entende e concebe certas, que assegura e afirma que somente tais coisas são verdadeiras, que nega todas as demais, que quer e deseja conhecê-las mais, que não quer ser enganado, que imagina muitas coisas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas coisas como que por intermédio dos órgãos do corpo? Haverá algo coisa em tudo isso que não seja tão verdadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existência se servisse de todas as suas forças para ludibriar-me? Haverá, também, algum desses atributos que possa ser distinguido do meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado de mim mesmo? Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário acrescentar aqui para explicá-lo. E tenho também certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (conforme supus anteriormente) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar. Donde, começo a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distinção do que anteriormente.”
Meditação Quarta: Do Verdadeiro e do Falso
§ 2. É certamente a idéia que tenho do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa em longura, largura e profundidade, e que não participa de nada que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais distinta do que a idéia de qualquer coisa corporal.(...)
Meditação Sexta: Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção Real entre a Alma e o Corpo do Homem
§ 24. A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo. Pois, se assim não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor alguma, eu que não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se algo se rompe em seu navio; e quando meu corpo tem necessidade de beber ou de comer, simplesmente perceberia isto mesmo, sem disso ser advertido por sentimentos confusos de fome e de sede. Pois, com efeito, todos esses sentimentos de fome, de sede, de dor, etc., nada são exceto maneiras confusas de pensar que provêm e dependem da união e como que da mistura entre o espírito e o corpo.
§ 33.“Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto, o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído do meu espírito (...)”.
DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores). pp. 173-174; 177, 197, 218, .

Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil
Marilena Chauí
O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza: 1. a concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social , elo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.
Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo ” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.
Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.
A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.
A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A idéia de sociedade, ao  contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornarem-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana.
A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).
Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma  assembléia democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a  determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo  absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para  promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.
Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.


O PROBLEMA DO CONHECIMENTO

            Você já se perguntou se a realidade é de fato aquilo que seus sentidos informam que é? Será que aquilo que você julga conhecer não sofre uma distorção como na imagem abaixo, onde temos a impressão de que as pessoas estão subindo a escada  continuamente? A teoria do conhecimento se interessa por esse tipo de problema. Em primeiro lugar, porque os sentidos do tato, da visão, da audição, do olfato e do gosto
são os principais instrumentos de conhecimento de que dispomos no dia-a-dia. Em segundo lugar, por não serem os únicos. A razão também é nossa guia. Mas até que ponto podemos confiar nos sentidos para conhecer as coisas? Quais os campos de atuação da razão? Quais seus limites? Será que existe algum critério ou princípio de conhecimento que assegure a certeza e a verdade?


Um Problema Chamado “Conhecimento”
            A questão do conhecimento é, provavelmente, o problema mais antigo da filosofia. É verdade que a produção e organização de conhecimentos técnicos, artísticos, agrícolas, etc., é anterior ao conhecimento filosófico iniciado pelos pré-socráticos.

                               (...)no espaço de alguns séculos, a Grécia conheceu, em sua vida social e espiritual,                                         transformações decisivas. Nascimento da Cidade e do Direito, advento, entre os                                            primeiros filósofos, de um pensamento de tipo racional e de uma organização                                                         progressiva do saber em um corpo de disciplinas positivas diferenciadas: ontologia,                                             matemática, lógica, ciências da natureza, medicina, moral, política, criação
                               de formas de arte novas, de novos modos de expressão, correspondendo à necessidade                                                de autentificar os aspectos até então desconhecidos da experiência humana: poesia lírica                     e teatro trágico nas artes da linguagem, escultura e pintura concebidas como artifícios                                            imitativos nas artes plásticas. (VERNANT, 1973, p. 04)

            Antes mesmo do nascimento da filosofia na Grécia antiga do séc. V a.C. já há uma cultura estabelecida, sobretudo nos textos épicos de Hesíodo e Homero, mas também na poesia lírica e nos conhecimentos rudimentares que os gregos do século VI a.C. tinham sobre astronomia.
            Ao se constituir, a filosofia provoca um afastamento gradual e doloroso desta tradição. Os heróis e os valores presentes nas histórias de Homero e Hesíodo são questionados pelos primeiros filósofos. A tradição mítica entra em crise e a filosofia passa a absorver questões como a origem do universo, o bem universal, o que é o ser, a organização política de uma cidade, etc. É provavelmente neste momento, por volta da metade do século V a.C. em Atenas, que podemos situar o nascimento de uma preocupação com as condições em que se dá o conhecimento.
            Mas por que o conhecimento é um tema exclusivamente filosófico? Antes do advento da filosofia não existe o problema? O helenista Jean-Pierre Vernant diz que a preocupação com o conhecimento puro, isto é, o saber que não carrega traços religiosos ou míticos, é uma característica dos primeiros filósofos. Homens como Tales, Anaximandro, Anaxímenes apresentam em suas investigações uma teoria, uma visão geral do mundo que explica racionalmente a estrutura física e espiritual desse mundo. Vernant afirma ainda que esses primeiros pensadores tinham plena consciência de que produziam um conhecimento radicalmente novo e, em muitos pontos, oposto à tradição religiosa. (VERNANT, 1973, p. 156-8)

Entre a Teoria e Prática
            Diversos testemunhos mostram, na verdade, que eles [os gregos] puderam, bem cedo, abordar certos problemas técnicos ao nível da teoria, utilizando para isso os conhecimentos científicos da época. Desde o século VI que uma obra como o canal subterrâneo construído em Samos pelo arkhitéktón [arquiteto] Eupalino de Mégara pressupõe o emprego de processos já difíceis de triangulação. Há inúmeras razões para acreditar-se que não estamos diante de um caso isolado. O termo arkhitéktón, em Platão e Aristóteles, designa, por oposição ao operário ou ao artesão que executa  o trabalho, o profissional que dirige os trabalhos do alto: sua atividade é de ordem intelectual, essencialmente matemática. Possuindo os elementos de um saber teórico, ele pode transmití-lo por um ensinamento de caráter racional, muito diferente da aprendizagem prática. (...) o arkhitéktón, no âmbito de sua atividade – arquitetura e urbanismo, construção de navios, engenhos de guerra, decorações e maquinarias teatrais – apóia-se em uma techne [arte, técnica] que se apresenta sob a forma de uma teoria mais ou
menos sistemática. (VERNANT, 1973, p. 247)

O Conhecimento como Justificação Teórica
            Ao falar do conhecimento usamos bastante o termo “problema”. Essa expressão vem do grego e significa literalmente “obstáculo”, “aquilo que está lançado”, o que é “saliente”. Para que o estudo de qualquer tema seja profundo, é sempre útil saber de antemão a problemática que se quer investigar. Isso também vale para a teoria do conhecimento.             De acordo com Franklin Leopoldo e Silva (1985), os principais problemas que a teoria do conhecimento deve investigar são:
1)  as fontes primeiras de todo conhecimento;
2)  os processos que fazem com que os dados se transformem em juízos ou afirmações acerca de algo;
3)  a forma adequada de descrever a atividade pensante do  sujeito frente ao objeto do conhecimento;
4)  O  âmbito do que pode ser conhecido segundo as regras de verdade.

As Fontes do Conhecimento
            Um dos temas tratados na teoria do conhecimento – e que se enquadra no problema das fontes do conhecimento – é a relação entre sensação, crença e conhecimento. O professor Newton Carneiro da Costa, especialista em lógica e teoria do conhecimento científico, defende, por exemplo, que todo conhecimento é crença, mas nem toda crença é conhecimento. Explica Da Costa:
                               O Sr. X pode acreditar (crer) que há vida em Netuno e ser um fato que em tal planeta aja                  vida, inclusive análoga a da Terra. Todavia, ainda não se tem conhecimento em acepção                              estrita, a menos que X possua justificação para sua crença.” (DA COSTA, 1997, p. 22)
            O que se passa neste caso é que pode haver uma coincidência entre a crença do Sr. X e a realidade da existência objetiva de vida em Netuno. Mas o Sr. X não sabe em que condições há vida lá, que procedimentos foram usados para se constatar isso, etc. Da Costa afirma que, pelo menos em ciência – mas, defendemos nós, igualmente em teoria do conhecimento – para se ter conhecimento é preciso ter uma crença justificada. Isso quer dizer que, se o tópico é da área de matemática pura, você precisará demonstrar aquele ponto que diz conhecer, se for um caso de física ou economia, terá que mostrar conhecimento das leis que governam tais áreas, ter acesso aos testes críticos, etc.
            O que foi dito acima nos leva a constatar que uma pessoa tem basicamente três níveis de consciência, cada qual correspondendo a uma perspectiva que dá corpo a sua visão do mundo. Esses três níveis são: sensação, crença e conhecimento. A sensação é o nível em que nosso contato com o mundo é puramente físico ou emocional. A crença, por seu lado, é um estado mental, uma representação de um determinado estado de coisas. Segundo Moser (2004), a crença fornece ao indivíduo uma espécie de esquema do mundo. Nesse sentido, ela mantém uma conexão importante com o conhecimento, como veremos. Por fim, o conhecimento propriamente dito é a capacidade de justificarmos e validarmos nossas sentenças sobre as coisas.

ATIVIDADE

Em grupos, responda as questões abaixo e apresente as respostas para debate.
1.  Qual é a relação entre conhecimento e necessidades humanas? Discuta com os colegas esse problema, examinando o tema a partir dos seguintes pontos:
a)  Pense num corpo de conhecimentos (teoria) de geometria, arquitetura, náutica, filosofia, política, etc., que foi se constituindo à medida que cresciam as dificuldades que o desenvolvimento dos aglomerados urbanos gerou, desde os gregos até nossos dias.

PERSPECTIVAS DO CONHECIMENTO
            As condições materiais nas quais o sujeito está inserido influenciam seu modo de pensar?
            O pensamento é anterior à experiência?
            O conhecimento é produto da experiência ou da razão?
            Penso, logo existo
            As lições cartesianas sobre o conhecimento fizeram escola na filosofia. Gerações inteiras de filósofos, de Kant a Sartre, passaram pelos textos cartesianos. O motivo está no gênio de Descartes, que investigou a fundo grandes classes de problemas que ocupam os filósofos desde o nascimento da filosofia, a saber: o que é substância, o problema da relação entre Mente e Corpo, a noção de Sujeito, o problema do
Movimento na física, as Paixões da Alma, os conceitos de Finalidade, Verdade, identidade, Erro e outros.
                                               Na quarta parte do Discurso do Método encontramos o que pode ser                                                  considerado o ponto de partida de toda a filosofa moderna e contemporânea:
                               Enquanto eu queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que                                       pensava, fosse alguma coisa e, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão                                            firme e tão certa (...) julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro                                     princípio da Filosofia que procurava. (Descartes, 1962, p. 66)
            Ao examinar as fontes do conhecimento, Descartes se detém num dado difícil de ser contestado: o fato de que penso, enquanto duvido, é  sempre um dado verdadeiro. É importante encarar esse juízo de Descartes menos como um raciocínio lógico do que uma constatação a que o filósofo chega. Como explica Lebrun: O cogito não é um raciocínio: é uma constatação de fato. Mas Descartes dá ao cogito o aspecto de um raciocínio, toda vez que deseja destacar o caráter necessário da ligação que o mesmo contém. (DESCARTES, 1962)
            O “logo” (donc) é a marca da necessidade que se segue da dúvida. Esta, por sua vez, não importa como ato, ou seja, não é a dúvida em si que importa, como se ela fosse um método. Ela é um momento do raciocínio. Podemos entender o argumento de Descartes da seguinte forma: o raciocínio todo engloba a “dúvida” e o “penso”. O resultado geral do raciocínio é: duvido, logo, penso, logo sou.
            Descartes escreveu também, dentre outros títulos, aquela que é considerada sua obra prima filosófica (podemos dizer que o Discurso do Método é o texto que ficou popular): Meditações Sobre a Primeira Filosofia. Escrito em tom de confissão, é um retrato visceral da gênese e dos fundamentos do conhecimento humano, além de tratar-se da obra em que Descartes apresenta seu melhor trabalho de argumenta-
ção e defesa de seus pontos de vista.
            Nas Meditações Descartes mostra que a verdadeira filosofia deve ser analítica, isto é, deve consistir num exame exaustivo dos elementos essenciais de um conceito com o objetivo de chegar em dados claros e  seguros para, progressivamente, constituir o corpo de saberes que está fora de qualquer dúvida. Embora o termo “analítico” tenha muitos significados em filosofia, em geral ele está associado a uma espécie de “profissionalização” do trabalho filosófico que ganhou consistência há mais de 70 anos a partir dos trabalhos dos ingleses George Edward Moore (1873-1958), Bertrand RusselI (1872-1970), Gilbert Ryle (1900-1976) e do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), para ficar apenas entre os mais célebres.

ATIVIDADE
Com base nos textos lidos responda em seu caderno:
1.         Qual a importância da dúvida no processo de conhecimento?
2.         Selecione um conjunto de informações, começando pelas impressões da infância, as informações aprendidas no seio familiar e, por fim, o que você aprende na escola hoje e:
a)  Faça um cuidadoso exame: qual o grau de confiança que você pode ter nelas.
b)  Seminário.
c)  Apresente para a turma o resultado de seu estudo.

Hume e a Experiência no Processo de Conhecimento
A principal obra filosófica de David Hume teve duas partes publicadas em 1739 em Londres e chamava-se Tratado da Natureza Humana (Treatise of Human Nature). A última parte foi publicada em 1740. Hume tinha no momento pouco mais de 25 anos. As três partes tratavam, respectivamente, do “Entendimento”, das “Paixões” e da “Moral”. Hume esperava que sua obra repercutisse nos meios filosóficos londrinos, mas a recepção foi fria e desdenhosa. Cerca de nove anos mais tarde Hume publica o texto Investigação Acerca do Entendimento Humano. Trata-se de uma versão mais popular do conteúdo do primeiro livro do Tratado. Na seção II da Investigação Hume diz que as percepções podem ser divididas em duas classes: as menos fortes são as idéias ou pensamentos. A outra categoria de percepções recebe o nome de impressões. Hume dá um sentido bastante amplo ao termo: “(...) pelo termo impressão, entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos.” (HUME, 1973)
            Hume diz que aquelas percepções chamadas “fracas”, que são as idéias, são originadas a partir da classe de percepções “fortes”, as impressões. Hume não diz o que exatamente ele entende por “forte” nesse contexto. Ele pretende mostrar que os pensamentos são sensações que perderam a conexão imediata, atual, com o objeto causador da sensação. Neste sentido as imagens que compõem o pensamento são percepções “fracas”, pois sua intensidade não é a mesma da impressão.
            Trata-se de uma tese extremamente arrojada. Ela contesta grande parte da tradição filosófica que construía conceitos com base em teses acerca da superioridade da razão e dos juízos universais. Como explica Plínio J. Smith:
                               Dois argumentos são oferecidos em favor da tese de que as impressões são causas das                                  idéias. O primeiro deles começa, no Tratado, com a revisão da correspondência entre                                       idéias e impressões simples, e invoca a conjunção constante entre elas. (...) Como não se                       pode imputar ao acaso essa conexão que se mantém constante num número infinito de                                             casos, a existência da relação causal é manifesta e só resta determinar o que é causa do                                   quê. (...) O segundo argumento procede pelo caminho inverso, partindo da ausência de                                  impressões quando se tem um defeito nos órgãos dos sentidos que os impede de                                      funcionar. Nos cegos ou surdos, há não apenas a ausência de impressão, como também                                            a da idéia correspondente. (...) Assim, mostra-se que, sem a impressão, não há idéia e,                                                com a impressão, tem-se a idéia correspondente.” (SMITH, 1995)
Da Distinção entre Conhecimento e Probabilidade
            David Hume distingue conhecimento e probabilidade. No conhecimento as “relações de idéias são dependentes das próprias idéias”. Para que essa relação se altere é preciso que uma idéia se altere (SMITH, 1995). Hume dá como exemplo a igualdade entre a soma dos ângulos internos de um triângulo e dois ângulos retos. Enquanto a idéia de triângulo não se alterar, essa igualdade será sempre verificada. Por outro lado, existe o que Hume chama de probabilidade, cujas relações não são as mesmas do conhecimento. A probabilidade é um conceito que trata de relações de fato, não de razão. Ao contrário do conhecimento, no qual negar a relação implica contradição, na probabilidade negar a relação é uma possibilidade. Para Hume existem três relações na
probabilidade: a identidade, as situações no tempo e lugar e a causalidade.
            Em relação à causalidade, Hume diz que é um raciocínio baseado  em conexões de causa e efeito constatados na experiência. Segundo Hume, quando dizemos que o fato A causou B e não há nenhuma experiência que sustente a relação, trata-se de um raciocínio arbitrário. Nesse sentido, Hume critica os que recorrem à razão para esclarecer a origem da idéia de causalidade e, assim, crêem que as relações de causas e efeitos possam se constituir em objetos de genuíno conhecimento. O raciocínio de causa e efeito é, em síntese, um raciocínio provável, cujo fundamento só é dado na experiência.

ATIVIDADE

Após a leitura do texto a respeito de Hume responda em seu caderno.

1.         O que são idéias de acordo com Hume?
2.         Como as idéias se formam?
3.         Qual a diferença entre conhecimento e probabilidade?
4.         Como formamos a noção de causalidade? 

A liberdade

Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo.
            Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe; fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontrar em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
            Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
            Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas.
            É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
            O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão.
            O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a Terra, e que o há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver.
            Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a inventar o homem.                         
                                                                                                          SARTRE, Jean-Paul.
                                                                                              O existencialismo é um humanismo, p. 9.

Concepção da liberdade como possibilidade objetiva


            Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a  “parte que  cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.
            Tortura-se um homem para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida; ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade.
            Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser. Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim, a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe…
            Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há um campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho possibilidades próximas e distantes…
            A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido, esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por uma criação absoluta…
            Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de existir, um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.


Merleau-Ponty

Três grandes concepções filosóficas da liberdade


            Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte. Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
            As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.
            A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).
         Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.
            Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
            No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.

Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
            Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa.
            Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto mundo”. É ela também que se encontra no poema de  Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade  “está sempre apenas onde a pomos” e  “nunca a pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade.
            A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes.
            O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa  -, ou a Cultura  – como para Hegel  – ou, enfim, uma formação histórico-social  – como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas. Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado para escolher  – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe  -, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
            Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz. Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade humana?
São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
2. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir.
            Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóico-hegeliano, existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis. Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazê-la.
            Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
            Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três concepções apresentadas, sempre levaram em conta a  tensão entre nossa liberdade e as condições  – naturais, culturais, psíquicas  – que nos determinam. As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.

A linguagem

A importância da linguagem

Na abertura da sua obra  Política, Aristóteles afirma que somente o homem é um “animal político”, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem  voz  (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a  palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.

Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do  Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da linguagem, o lingüista Hjelmslev afirma que  “a linguagem é inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos”, sendo  “o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças  ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana.”

Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação:

Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso.

Gestos e vozes, na busca da expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.

Por seu turno, Hjelmslev afirma que a linguagem é  “o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador.”

A linguagem, diz ele, está sempre à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos, acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do pensamento,  “mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento”, é  “o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração”.
   
A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes.
  
No entanto, no diálogo  Fedro, Platão dizia que a linguagem é um  pharmakon.  Esta palavra grega, que em português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno e cosmético.

Ou seja, Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução.

Essa mesma idéia da linguagem como possibilidade de comunicação-conhecimento e de dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade.  “Que sejam confundidos”, disse Deus.

A força da linguagem

Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.

A palavra grega  mythos, como já vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a agricultura, a caça, a pesca, o a rtesanato, a guerra) e da vida do grupo social ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou de relação com o sagrado  -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam.

O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da  Gênese, na Bíblia judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem: “E Deus disse: faça-se!”, e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A palavra divina é criadora.

Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa cristã, o celebrante, pronunciando as palavras “Este é o meu corpo” e  “Este é o meu sangue ”, realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e
africanos, os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.

A linguagem tem, assim, um poder encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado. Eis por que, em quase todas as religiões,
existem profetas e oráculos, isto é, pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divi nas aos humanos.
Esse poder encantatório da linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos contos infantis há palavras poderosas (“Abre-te, Sésamo!”,  “Shazam!”) e encantatórias (“Abracadabra”). Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme  Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as pal avras  “Asa Nisa Nasa”, trazendo de volta o passado.

As palavras assumem o poder contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as pronunciar. As palavra s-tabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve
pronunciar a palavra “demônio” ou “diabo”, porque este aparece; em vez disso se diz  “o cão”,  “o demo”,  “o tinhoso”). As palavras-tabus não existem  apenas na esfera religiosa, mas também nos brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo, sob pena de punição para quem as
pronunciar.

Existem, ainda, palavras-tabus na vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual,
aborto, amante, masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista, guerrilheiro, socialista, comunista, etc.

O poder mágico-religioso da palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições, direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.

O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio.  Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as expressões “Dou minha palavra” ou  “Ele deu sua palavra”, para indicar o juramento feito e a  “palavra empenhada” ou  “palavra de
honra”. É por isso também que, até hoje, nos tribunais, se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta:  “Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?”, dizendo:  “Juro”. Razão pela qual o perjúrio  – dizer o falso, sob juramento de dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.

Nas sociedades menos complexas do que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida, sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam solenemente a o celebrante  “Aceito”, para que o casamento esteja concretizado.

Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem. Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.

A outra dimensão da linguagem

Para referir-se à palavra e à linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e  logos. Diferentemente do mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra, pensamento/idéia e realidade/ser.  Logos é a palavra racional do conhecimento  do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres).

É a palavra-pensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra -pensamento de alguma coisa: o  “logia” que colocamos no final de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia, psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.

Do lado do  logos desenvolve-se a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são  conceitos ou  idéias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.

Essa dupla dimensão da linguagem (como  mythos e  logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso, muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa, racional. 

A origem da linguagem

Durante muito tempo a Filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.

Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou, séculos mais  tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.

Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente,
tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente Rousseau em seu  Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.

Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura  nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois
exprimiram seus pensamentos.

Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. 

Um gesto ou um grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.

O que é a linguagem?

A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos.

Embora tão simples, essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se o cupado desde há muito tempo.

Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido; 
2. a linguagem é um sistema de sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos, os  signos, ou objetos que indicam outros, designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc. No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras (sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas, isto é, os signos lingüísticos (as pal avras) possuem uma função indicativa ou denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam; 
4. a linguagem tem uma função comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo neste caso  conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode exprimir  sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra  água, se for usada por um professor numa  aula de química, conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H 2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios, chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.

A definição nos diz, portanto, que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.

No entanto, essa definição não nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a
linguagem pode ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como podemos aprender uma outra língua?

Na resposta a várias dessas perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre empiristas e intelectualistas.

Empiristas e intelectualistas diante da linguagem

Para os empiristas, a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais (as palavras). 

As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando, graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia d os sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial. A palavra ou
imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.

O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de “perturbações da linguagem”: a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem
conseguir compreendê-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).

Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que, portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual não temos consciência
(desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o sentido das palavras. 

A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.

Os intelectualistas, porém, apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a  possibilidade para falar,  ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é
apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma representação de um pensamento, de uma idéia ou de
valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.

O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas.

A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.

Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra  água; quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.

As concepções empirista e intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos lingüísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas; 
2. ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e  das idéias, ou seja, as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo. 

Esses dois pontos de concordância fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada  algo perturbador e negativo. Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado p erturbador porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as
coisas e representar claramente as idéias.

Por esse motivo, periodicamente, aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em  “purificar” a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da física.

Purificar a linguagem 

Uma dessas correntes filosóficas desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é, aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é, uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo  das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à  sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.

A linguagem lógica era uma metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos:  “O livro é de autoria de José Antônio Silva” e, na metalinguagem lógica, diremos:  “A proposição  ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y, z”.

No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda,  que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.

Além disso, descobriu-se que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser. 

Crítica ao empirismo e ao intelectualismo

As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia.

Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por exemplo, ordena-se a um afásico:  “Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa”. O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis,
conforme lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e lilás-claro.

Os dois psicólogos observaram, assim, que a palavra  azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que, portanto, seu p roblema de linguagem era também um problema de pensamento. No entanto, do ponto devista cerebral ou anatômico, a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso, compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e q ue a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento.

Esses estudos, porém, não reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo do pensamento.

A lingüística e a linguagem

Durante o século XIX, o estudo da linguagem ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado.

A linguagem era estudada sob duas perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo das  raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias lingüísticas e chegar à língua-mãe original. Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era comum aos filólogos e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralingüísticos (migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).

Tais estudos, porém, viram-se diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.

Essa descoberta teve r esultados curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos (como a alemã);  línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o “caráter da língua” segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.

A partir do século XX, uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são:
  • a linguagem é constituída pela distinç ão entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da  língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a minha; 
  • a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido  às partes, isto é, as partes não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l indiferentemente para  todas as palavras, sejam elas em  l ou r; os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou  r). Os signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ouentidades, isto é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos; 
  •  numa língua, distinguem-se signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal material da língua ( r,  l,  p,  b,  q,  g, por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação;
  •  a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua. Assim, por exemplo, a distinção entre  pa e ba, pata e bata é convencional, mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável; 
  •  como as partes (signos ou significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer  pata e  bata,  dente e  tente é dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o  r e o  l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos não existem nessas línguas. Por relação com sua própria língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o  r (que corresponde a um som  ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em japonês) e a substituir o  l  por   r. Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar  an e  am porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
  •  a língua é um código (conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através de  mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui  um  emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um  receptor, aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
  •  o sujeito falante possui duas capacidades: a  competência (isto é, sabe usar a língua) e a  performance (isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os atos de linguagem que realiza;
  •  a língua se realiza em duas dimensões: a  sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
  •  a língua é inconsciente, isto é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecê-la cientificamente.

Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias, princípios e leis, e cada
partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).

O jogo existe antes e depois de cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro, respondendo a cada um deles.

A lingüística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas.

Por exemplo, em inglês, é possível dizer  “The man I love ”. Quando traduzimos para o português temos:  “O homem que amo”. Observamos que, em inglês, parece  “faltar” uma palavra: o  “que”. Notamos também que em inglês parece “sobrar ” uma palavra: o  “I”, o “eu”, que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem sobra nada.

Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas de estrutura lingüística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa  fromage para o português, queijo, temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas
não é o caso.

Quando um inglês usa  cheese, ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao dizer  fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região onde mora, da hora e do dia em que vai comer
o queijo, sempre acompanhado de pão e vinho.

Para um inglês e para um francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer  cheese não é dizer  fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer  cheese nem queijo; dizer queijo não é dizer  cheese nem fromage.

Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não é fromage nem queijo).

Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social,  histórico, determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.

A experiência da linguagem 

Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:  emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.

Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos. 

Em primeiro lugar, teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo lingüístico. Por que uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a  palavra  fumaça, que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que
indica outra coisa (fogo). A palavra  fumaça, porém, é um  símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela. O símbolo é um  análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc. A l inguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.

Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá essa relação? 

Essa pergunta, como vimos, era central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da
Linguagem resume-se numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade?

Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal  <-> coisa indicada (realidade)
signo verbal  <-> idéia, conceito, valor (pensamento)

No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma idéia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.

Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege.  “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas
essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.

Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.

Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se referem a  significações,
inventam significações, criam significações. 

Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos:  “Puxa! Eu nunca tinha  pensado nisso!”, ou então:  “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma idéia que tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou ainda:  “Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.

Como essas frases são possíveis? É que a linguagem  tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a  significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.

Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante  <->  sentido ou significação; significado  <-> realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais O mundo suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões lingüísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras n ovas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros. 

A linguagem:

  • refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra;
  •  relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras;  
  • exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;             
  • tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.

A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:

A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem  não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial,  nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações. 

Linguagem simbólica e linguagem conceitual  

A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora. Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma palavra ou de um conjunto de  palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão).

A linguagem simbólica realiza-se principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética.

A linguagem simbólica (dos mitos, da religião, da  poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
  • a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles;
  •  a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
  •  a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada;
  •  a linguagem simbólica leva-nos para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos, raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento; 
  •  a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o  nosso; a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes; 
  •  a linguagem simbólica, privilegiando a memória e a imaginaç ão, nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.

RESUMINDO…

A linguagem em sentido amplo (isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos. Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes, bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que criam em nós a  necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa capacidade para a performance lingüística, seja ela cotidiana, artística, científica ou filosófica;
4. fatores lingüísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações.

Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
  • a linguagem n ão é mecanismo psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam ascondições biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
  • a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
  • a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores; 
  •  a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de nossa existência; 
  •  a linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira; 
  • a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.
CHAUI, Marilena.  Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000. 

FREUD E O INCONSCIENTE

O conceito de inconsciente introduzido por Freud baseia-se em uma realidade psíquica, característica dos processos inconscientes. É preciso diferenciar inconsciente, sem consciência, de inconsciente, conforme elaborado por Freud, que diz respeito a uma instancia psíquica basilar na constituição da personalidade.
Freud procurou explicar o operacional do inconsciente e propôs uma estrutura particular. Dividiu-o em três partes : Id, Superego e Ego – estabelecendo uma nova teoria.
Quando o Ego se submete ao id, torna-se imoral e destrutivo; ao se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter ao mundo, será destruído por ele.
Freud estava especialmente interessado na dinâmica destas três partes da mente. Argumentou que essa relação é influenciada por fatores ou energias inatas, que chamou de pulsões. Descreveu duas pulsões antagônicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e Tanatos, a pulsão da morte. Esta última representa uma moção agressiva, apesar de às vezes se resolver em uma pulsão que nos induz a voltar a um estado de calma, principio de nirvana ou não existência.
Ego equilibra nossas necessidades primitivas e nossas crenças éticas e morais. É uma instância na qual se inclui a consciência. Um eu saudável proporciona a habilidade para adaptar-se à realidade e interagir com o mundo exterior de uma maneira que seja cômoda para o Id e o Superego; obedece à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao Id sem Transgredir as exigências do superego. É a parte mais superficial do indivíduo.
Superego, a parte que contra – age ao Id, representa os pensamentos morais e éticos. É inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao Id, impedindo-o de satisfazer plenamente os seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a repressão sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob forma moral, como um conjunto de interdições e deveres, e por meio da educação, pela produção do “eu ideal”, isto é, da pessoa moral, boa e virtuosa.
Id representa os processos primitivos e constitui o motor do pensamento e do comportamento humano. Contém nossos instintos, pensamentos e desejos inconscientes de caráter sexual e perverso, regidos pelo principio do prazer, é a libido. É o reservatório de energia psíquica que comporta nossas pulsões.

Teoria do Conhecimento

CONHECIMENTO: Um tema para muitas discussões
Desde a Antiguidade grega, quase todos os filósofos se preocupavam com o problema do conhecimento. Problema que envolve questões básicas como:
· O que é conhecimento?
· Qual é o fundamento do conhecimento?
· É possível o conhecimento verdadeiro?
Todas essas questões têm sido tratadas por uma disciplina filosófica que costuma ser designada por diversos nomes: teoria do conhecimento, gnosiologia, crítica do conhecimento ou epistemologia. Portanto, utilizaremos à denominação teoria do conhecimento.
Em que consiste, então, a teoria do conhecimento?
“A teoria do conhecimento pode ser definida como a investigação acerca das condições do conhecimento verdadeiro". Neste sentido podemos dizer que existem tantas teorias do conhecimento quantos foram os filósofos que se preocuparam com o problema, pois é impossível constatar uma coincidência total de concepções mesmo entre filósofos que habitualmente são classificados dentro de uma mesma escola ou corrente.
Dentre as principais questões tematizadas na teoria do conhecimento podemos citar: as fontesprimeiras de todo conhecimento ou ponto de partida; o processo que faz com que os dados se transformem em juízos ou afirmações acerca de algo; a maneira como é considerada a atividade do sujeito frente ao objeto a ser conhecido; o âmbito do que pode ser conhecido segundo as regras da verdade etc.”LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Teoria do conhecimento.In: MORA DE OLOIVEIRA, Armando et al. Primeira filosofia. Tópicos de filosofia geral, p 175.
Cada teoria do conhecimento constitui, portanto , uma reflexão filosofia como o objetivo de investigar as origens, as possibilidadesos fundamentos , a extensão e o valor do conhecimento.
Foi somente a partir da Idade Moderna que a teoria do conhecimento passou a ser tratada como uma das disciplinas centrais da filosofia. Nesse seu processo de valorização colaboraram, de forma decisiva, as obras do filosofo francês René Descartes (1596-1650), do filosofo inglês John Locke (1632-1704) e do filosofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), conforme veremos adiante.
Sujeito e objeto: elementos do processo de conhecer
O que é, afinal, conhecer ? Vejamos uma primeira noção.
Conforme analisa o filosofo Richard Rorty, na concepção de grande parte dos filósofos , “conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente”!. É a interpretação de que o conhecimento érepresentação , isto é, uma “imagem” ou “reprodução”,mental da coisa conhecida.
Assim, de acordo com a noção representacionista do conhecimento, quando conhecemos, por exemplo, um pássaro, formamos uma representação, uma “imagem adequada” desse pássaro em nossa mente.
Outra noção importante é a de que, no processo de conhecimento, sempre existiria a relação entre dois elementos básicos:
· Um sujeito conhecedor (nossa consciência, nossa mente) e
· Um objeto conhecido (a realidade, o mundo, os inúmeros fenômenos).
Só haveria conhecimento se o sujeito conseguisse apreender o objeto, isto é, conseguisse representa-lo mentalmente.
Dependendo da corrente filosófica , será dada, no processo de conhecimento, maior importância ao sujeito (é o caso do idealismo) ou ao objeto (é o caso do realismo ou materialismo). Vejamos.
Realismo
De acordo com as teorias realistas do conhecimento, as percepções que temos dos objetos sãoreais, ou seja, correspondem de fato às características presentes nesses objetos, na realidade. Por exemplo: as formas e cores que o sujeito percebe no pássaro são cores e formas que o pássarorealmente tem em si.
No realismo mais ingênuo, isto é menos critico, o conhecimento ocorre por uma apreensão imediata das características dos objetos, isto é, os objetos se mostram como realmente são ao conhecimento que então se estabelece.
Há no entanto, outras formas mais críticas de realismo, que problematizam a relação sujeito-objeto, mas que mantêm a idéia básica de que o objeto é determinante no processo de conhecimento.
Idealismo
Segundo as teorias idealistas do conhecimento, o sujeito predomina em relação ao objeto, isto é, a percepção da realidade é construída pelas nossas ideias, pela nossa consciência. Assim, os objetos seriam “construídos” de acordo com a capacidade de percepção do sujeito.
Consequentemente, o que existiria como realidade seria a representação que o sujeito faz do objeto. Por exemplo: as formas e cores que o sujeito. Por exemplo: as formas e cores que o sujeito percebe no pássaro são apenas idéias ou representações desses atributos; não entra em questão se elas realmente estão no pássaro.
Também no idealismo, há posições mais ou menos radicais em relação à afirmação do sujeito como elemento determinante na relação de conhecimento.
Empirismo: a valorização dos sentidos
A palavra empirismo tem sua origem no grego empiria, que significa “experiência sensorial”.
O empirismo defende que todas as nossas ideias são provenientes de nossas percepções sensoriais (visão, audição, tato, paladar, olfato). Como disse o filosofo empirista inglês John Locke (1632-1704) : “nada vem à mente sem ter passado pelos sentidos”.
Locke afirma também que, ao nascermos, nossa mente é como um papel em branco, desprovida de ideias. De onde provém, então, o vasto conjunto de ideias que existe na mente humana? A isso, Locke responde com uma só palavra: da experiência. E a experiência, segundo Locke, supre nosso conhecimento por meio de duas operações: sensação e reflexão. A sensação leva para a mente as varias e distintas percepções das coisas, sendo, por isso, bastante dependente dos sentidos. Já a reflexão consiste nas operações internas de nossa própria mente que, nesse caso, desenvolve as ideias primeiras fornecidas pelos sentidos. Assim, conclui Locke:
“Afirmo que estas duas, a saber, as coisas materiais externas, como objeto da sensação, e as operações de nossas próprias mentes, como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos dados originais dos quais as ideias derivam”.
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano, p.160.
Racionalismo: a confiança na razão
A palavra racionalismo deriva do latim ratio, que significa “razão” . O termo é empregado de muitas maneiras. Aqui, racionalismo está sendo empregado para designar a doutrina que atribui exclusiva confiança na razão humana como instrumento capaz de conhecer a verdade. Ou, como recomendou o filósofo racionalista Descartes (1596-1650): “nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidencia de nossa razão”.
Os racionalistas afirmam que a experiência sensorial é uma fonte permanente de erros e confusões sobre a complexa realidade do mundo. Somente a razão humana, trabalhando com os princípios lógicos, podem atingir o conhecimento verdadeiro, capaz de ser universalmente aceiro. Para o racionalismo, os princípios lógicos fundamentais seriam inatos, isto é, eles já estão na mente do homem desde o seu nascimento. Daí por que a razão deve ser considerada como a fonte básica do conhecimento.
Apriorismo kantiano: entre a experiência e a razão
Vimos que o empirismo considera a experiência dos sentidos como a base do conhecimento. Já o racionalismo afirma ser a razão humana a verdadeira fonte do conhecimento. Existem também posições filosóficas que buscam um meio – termo para essas visões tão opostas. É o caso do que se denominou apriorismo kantiano. Vejamos.
Kant (1724 – 1804) afirma que todo conhecimento começa com a experiência, mas que a experiência sozinha não nos dá o conhecimento. Ou seja, é preciso um trabalho do sujeito para organizar os dados da experiência. Por isso, ele buscou saber como é o sujeito a priori, isto é, o sujeito antes de qualquer experiência, e conclui que existem no homem certas faculdades ou estruturas (as quais ele denomina formas da sensibilidade e do entendimento) que possibilitam a experiência e determinam o conhecimento.
Para Kant, portanto, a experiência forneceria a matéria do conhecimento (os seres do mundo), enquanto a razão organizaria essa matéria de acordo com suas formas próprias, estruturas existentes a priori no pensamento (daí o nome apriorismo).
Depois de Kant, muitos outros pensadores continuaram debruçando sobre o problema do conhecimento e chegando a posições diversas do apriorismo kantiano. Como em tantos outros campos da filosofia, a questão do conhecimento é assunto que escapa a uma palavra final é definitiva.
Possibilidades do conhecimento
A capacidade de conhecer a verdade
Somos capazes de conhecer a verdade? É possível ao sujeito apreender o objeto? Afinal, quais são as possibilidades do conhecimento humano?
As respostas dadas a essas questões levam ao surgimento de duas correntes básicas e antagônicas na historia da filosofia. Uma é o ceticismo, que diagnostica a impossibilidade de conhecermos a verdade. A outra é o dogmatismo, que define a possibilidade de conhecermos a verdade.
Mas o que queremos dizer por verdade ? Que verdade é essa da qual tratam tantos pensadores? A palavra verdade tem um sentido básico de uma correspondência entre o que se pensa ou se diz e a realidade que se quer conhecer ou expressar. Se eu digo “O pássaro é azul” e o pássaro é realmente azul, então isso é uma verdade, um conhecimento verdadeiro.
No entanto, quando os diversos filósofos que tratam da temática do conhecimento falam em “conhecer a verdade” estão se referindo não só a esse sentido básico, mas também, e principalmente, à idéia de conhecer como o objeto é na sua essência, ou seja a realidade mesma, intrínseca, daquilo que se quer conhecer.
Nesse sentido, eles também usam a expressão o ser das coisas, ou seja, sua realidade essencial. O que se discute aqui é que, por exemplo: o pássaro pode parecer azul a muitas pessoas, mas ser de um verde-azulado para outras, talvez ter outra cor totalmente distinta ou mesmo não ter cor nenhuma. Qual será a cor verdadeira desse pássaro ? Será possível conhecer a verdade?
Vejamos, então, algumas das teses (ou respostas dadas a essa pergunta), das principais correntes do ceticismo e do dogmatismo e , em seguida, uma terceira doutrina, o criticismo, que tenta superar o impasse criado por essas posições antagônicas.
Ceticismo absoluto: tudo ilusório
O ceticismo absoluto consiste em negar de forma total nossa possibilidade de conhecer a verdade. Assim, para o ceticismo absoluto, o homem nada pode afirmar, pois nada pode conhecer com total certeza.
Muitos consideram o filósofo grego Górgias (485-380 a. C) o pai do ceticismo absoluto. Segundo ele “o ser não existe; se existisse não poderíamos conhecê-lo. Se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-los aos outros”.
Outros estudiosos apontam o filosofo grego Pirro (365-275 a. C) como o fundador do ceticismo absoluto . Pirro afirmava ser impossível o homem conhecer a verdade devido a duas fontes principais de erro:
· Os sentidos – segundo Pirro , nossos conhecimentos são provenientes dos sentidos (visão, audição, olfato, tato , paladar). Mas estes não são dignos de confiança, pois podem nos induzir ao erro.
· A razão - Para Pirro, as diferentes e contraditórias opiniões manifestadas pelas pessoas sobre os mesmos assuntos revelam os limites de nossa inteligência. Jamais alcançaremos certeza de qualquer coisa.
Os críticos de ceticismo absoluto consideram-no uma doutrina radical, estéril e contraditória. Radical porque nega totalmente a possibilidade de conhecer. Estéril porque não leva a nada.Contraditória porque, ao dizer que nada é verdadeiro, acaba afirmando que pelo menos existe algo de verdadeiro, isto é, o conhecimento de que nada é verdadeiro. Então, aqueles que duvidam plenamente da nossa possibilidade de conhecer, ironiza o filosofo Jacques Maritain “só poderiam filosofar guardando o silêncio absoluto – mesmo no interior de suas almas”
Ceticismo relativo : o domínio do provável
O ceticismo relativo, como o próprio nome diz, consiste em negar apenas parcialmente nossa capacidade de conhecer a verdade, ou seja, apresenta uma posição moderada em relação às possibilidades de conhecimento, comparada ao ceticismo absoluto.
Em doutrinas que manifestam um ceticismo relativo, destacamos as seguintes :
· Subjetivismo – considera o conhecimento uma relação puramente subjetiva e pessoal entre o sujeito e a realidade percebida. O conhecimento limita-se às ideias e representações elaboradas pelo sujeito pensamente, sendo impossível alcançar a objetividade. O subjetivismo nasce com o pensamento do grego Protágoras, sofista do séc. V a. C, que dizia que o homem é a medida de todas as coisas, ou seja , a verdade é uma construção humana, ela não está nas coisas;
· Relativismo – entende que não existem verdades absolutas, mas apenas verdades relativas,que tem uma validade limitada a um certo tempo, a um determinado espaço social, enfim , a um contexto histórico etc.;
· Probabilismo –propões que nosso conhecimento é incapaz de atingir a certeza plena. O que devemos alcançar é uma verdade provável. Essa probabilidade pode ser digna de maior ou menor credibilidade, mas nunca chegará ao nível da certeza completa, da verdade absoluta.
· Pragmatismo- propõe uma concepção dos homens como seres práticos, ativos, e não pensantes seres. Por isso, abandonam a pretensão de alcançar a verdade, entendida como a correspondência entre o pensamente e a realidade. Para o pragmatismo, o conceito de verdade deve ser outro: verdadeiro é aquilo que é útil, que dá certo, que serve aosinteresses das pessoas na sua vida prática. Nesse sentido, a verdade não seria correspondência do pensamento com objeto, mas a correspondência do pensamento com o objetivo a ser atingido.
Dogmatismo: a certeza da verdade
Uma doutrina é dogmática quando defende, de forma categórica, a possibilidade de atingirmos a verdade. Dentro do dogmatismo, podemos distinguir duas variantes básicas:
· Dogmatismo ingênuo- predominante no senso comum , confia plenamente nas possibilidades do nosso conhecimento . Não vê problemas na relação sujeito conhecedor e objeto conhecido. Crê que, sem grandes dificuldades, percebemos o mundo tal qual ele é;
· Dogmatismo crítico – defende nossa capacidade de conhecer a verdade mediante um esforço conjugado de nossos sentidos e de nossa inteligência. Confia que, através de um trabalho metódico, racional e cientifico, o ser humano se torna capaz de conhecer a realidade do mundo.
Criticismo: busca de superação do impasse
O criticismo, desenvolvido pela filosofia de Kant no século XVIII, representa uma tentativa de superação do impasse criado pelo ceticismo e o dogmatismo. Tal como o dogmatismo, acredita na possibilidade do conhecimento, mas se pergunta pelas reais condições nas quais seria possível esse conhecimento. Trata-se de uma posição crítica diante da possibilidade de conhecer.
O resultado dessa postura critica desenvolvida por Kant leva a uma distinção entre o que o nosso entendimento pode conhecer e o que não pode.

LIBERDADE EM SARTRE

Perante a justiça está sentado um porteiro. Com ele vem ter um homem da província, pedindo-lhe que o deixe entrar. Responde o porteiro que, por enquanto, não lhe pode permitir a entrada. Depois de refletir, o homem pergunta se mais tarde poderá entrar.
– É possível – diz o porteiro –, mas agora não.
Visto que as portas da justiça se acham abertas como sempre, enquanto o porteiro dá um passo, o homem se curva a fim de lançar um olhar para dentro, através do portão. Percebendo isso, ri o porteiro e diz:
– Se tens tanta vontade de entrar, procura fazê-lo, apesar da minha proibição. [...] Anos a fio vive o homem a observar o porteiro quase ininterruptamente. Esquece os demais porteiros, e aquele parece-lhe o único obstáculo de seu acesso à justiça. [...] Não lhe sobra, porém, muito tempo de vida. Antes de morrer, no seu cérebro as experiências de todo aquele tempo se condensam numa única pergunta que até então ainda não fez ao porteiro. Acena a este, por não mais poder soerguer o corpo congelado. O porteiro tem de se debruçar profundamente sobre ele, porque a diferença de estatura aumentara muito em prejuízo do homem.
– Que é que você quer ainda saber? – pergunta o porteiro. – Você é insaciável.
– Não é verdade que todos procuram ter acesso à justiça? – pergunta o homem.
– Como é possível que em todos estes anos ninguém tenha pedido ingresso, a não
ser eu?
O porteiro percebe que o homem já está nas últimas, e, para lhe alcançar ainda o ouvido quase extinto, brada-lhe:
Por aqui ninguém mais pode obter ingresso: esta porta estava destinada apenas a você. Agora eu vou, e fecho-a. (KAFKA, 1999, p. 368-369)

A liberdade é natural ou uma conquista humana?
O homem é livre ou se torna livre?

Jean-Paul Sartre e a Liberdade

Filósofo francês, nascido em Paris, em 1905, falecido em 1980. Sartre vivenciou e pôde refletir os acontecimentos mais marcantes do século XX. A Segunda Guerra Mundial só para relacionar um. Durante a guerra, Sartre atuou como soldado no serviço de meteorologia e foi preso pelos alemães, ficando entre 1940 e 1941 preso no Campo de
Concentração de Trier na Alemanha.

Foge do Campo de Concentração e passa a atuar no movimento de Resistência francês, mas sempre utilizando sua principal arma: a palavra. Em sua obra As Palavras, obra autobiográfica afirma: “(...) o mundo me utilizava para fazer-se palavra”. (SARTRE, 1984, p. 157)

A discussão da liberdade está na obra, O existencialismo é um humanismo, de 1946, na qual Sartre procura mostrar o sentido ético do existencialismo diante das críticas a sua obra, O ser e o nada.

Sartre destacou-se não somente com as obras filosóficas, mas, sobretudo com as literárias, foi inclusive agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, após a publicação de As Palavras. Porém recusou-se aceitá-lo por entender que seria reconhecer que os juízes tivessem autoridade sobre sua obra.
A existência precede a essência

Sartre preocupa-se em esclarecer que há dois tipos de existencialismo, o cristão, que tem como representantes Jaspers e Gabriel Marcel; e o existencialismo ateu, que tem como representantes Heidegger, os existencialistas franceses e o próprio Sartre. O que há em comum entre os existencialistas cristãos e ateus é “(...) o fato de considerarem que a existência precede a essência. (SARTRE, 1987, p. 4-5)

Isto significa que, diferente dos filósofos anteriores, sobretudo da Filosofia do século XVIII, os existencialistas não aceitam o fato de o homem possuir uma natureza humana. E o existencialismo ateu, do qual Sartre é um dos mentores, fundamenta a inexistência de uma natureza humana pelo fato de afirmarem a inexistência de Deus.

(...) Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem (...) o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. (SARTRE, 1987, p. 5-6)

Para o existencialismo, o homem ao nascer não está definido, mas irá através de sua existência fazer-se homem. Quando nasce, diferente dos demais animais, o homem tem em suas mãos o que poderá tornar-se. Como afirma Silva (2004) “(...) liberdade implica que posso sempre ser um outro projeto, porque nenhuma escolha é em si justificada”.
Sendo que “(...) nenhuma escolha decidirá sobre a própria liberdade, porque não posso escolher ser livre”. (SILVA, 2004, p. 144)

Sartre alerta para o fato de que mesmo que a escolha seja subjetiva, seja individual, o homem está sempre relacionado aos limites da própria realidade humana.

Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. (SARTRE, 1987, p. 6-7)

Na realidade, a existência de cada um de nós se dá inserida nos limites da subjetividade humana. O ser humano ao mesmo tempo em que é indivíduo, torna-se e realiza-se enquanto ser através da sua relação com os demais de sua espécie e, portanto as escolhas que faz são escolhas que engajam toda a humanidade. Porém, “(...) essa escolha de ser, como todas as que poderiam ser feitas, está sempre em questão, porque a realidade humana é uma questão: nenhuma resolução, nenhuma deliberação assegura a persistência da escolha”. (SILVA, 2004, p. 145)

É importante destacar que a ética sartreana fundamenta-se no valor e na responsabilidade.Desse modo, instituir valores é implicitamente negar valores, pois devo optar por um único critério, e, quando o faço, os outros não permanecem como virtualidades positivas, mas se desvanecem como não-valores. É nesse sentido que a universalidade está implicada na instituição do valor imanente à escolha: só posso escolher um negando os outros, e então aquele que escolho torna-se universal; naquele momento, ele é o único capaz de orientar a minha escolha, porque foi essa própria escolha que o posicionou como único. A radicalidade da escolha não permite que a instituição de um valor conserve uma pluralidade possível: ela anula todos os outros
critérios. (SILVA, 2004, p. 147)

O que, na realidade, Silva busca alertar é para o fato de que não há um valor em absoluto e que a cada escolha, ao instituir-se valores, ocorre a anulação dos demais critérios utilizados anteriormente.

Na discussão da responsabilidade, e tendo claro que “(...) toda decisão é sempre decisão de criar valores (...) não é possível não escolher, não é possível não assumir responsabilidade pelas escolhas”. (SILVA, 2004, p. 150-151). Nesse sentido, é interessante discutir a questão histórica de responsabilidade do cidadão alemão comum com o Holocausto.

É o que discute o historiador Michael Marrus, quando afirma que:

Assim, temos apenas uma idéia muito vaga das relações entre a política antijudaica nazista e a opinião pública. Embora haja uma crença disseminada de que o anti-semitismo fazia parte da força de coesão ideológica do Terceiro Reich, mantendo unidos elementos opostos da sociedade alemã, os historiadores não foram capazes de identificar um impulso assassino fora da liderança nazista. Eu argumentei que as variedades populares de anti-semitismo, sozinhas, nunca foram fortes o suficiente para apoiar a perseguição violenta na era moderna. No caso de certos grupos, como o alto comando da Wehrmacht, é muito provável que as predisposições antijudaicas tenham facilitado sua colaboração efetiva no genocídio. Em outros casos, a indiferença ou a superficialidade parecem ter sido mais comuns – o que é suficientemente chocante quando vemos horrores do Holocausto, mas de fato isto é muito diferente de um incitamento ao assassinato em massa. (MARRUS, 2003, p. 180-181)

A discussão historiográfica mais recente busca entender como se comportava a população alemã diante do genocídio. Há alguns historiadores que responsabilizam a população alemã pelo fato de ter se comportado de forma indiferente ao que ocorria. Porém, a posição do historiador Michael Marrus é de que apesar de sua indiferença não é possível responsabilizá-la.

O historiador britânico Ian Kershaw afirma que “(...) a estrada para Auschwitz foi construída com ódio, mas pavimentada com indiferença”. (KERSHAW, apud MARRUS, 2003, p. 176) Será que Kershaw tem o mesmo posicionamento de Marrus em relação à responsabilidade dos alemães em relação ao Holocausto? Em 1996, Daniel Goldhagen, lança o livro Os verdugos voluntários de Hitler, onde afirma que “(...) o mundo dos campos de concentração revela a essência da Alemanha que se entregou ao nazismo, da mesma maneira que os que mataram revelam os crimes e a barbárie que os alemães comuns estavam dispostos a aceitar de bom grado a fim de salvar a Alemanha e o povo alemão do último perigo “Der Jude” (o judeu)”. (GOLDHAGEN, apud FONTANA, 2004, p. 372-373)

É interessante destacar que toda essa discussão histórica tem uma forte conotação ética por se tratar de valorar as ações dos homens diante de um acontecimento considerado hediondo, pelo fato de estender a responsabilidade a toda a população e ter saído do corriqueiro que é atribuir apenas aos governantes e aos que estavam a serviço do poder, mas também ao cidadão comum que se portou de forma indiferente ao que ocorria em sua pátria naquele momento.

O homem é liberdade

Para Sartre o homem é liberdade. Como entender essa afirmação? Entende-se que não há certezas e nem modelos que possam servir de referência, cabe ao homem inventar o próprio homem e jamais esquecer-se que é de sua responsabilidade o resultado de sua invenção. Pelo fato de ser livre é o homem quem faz suas escolhas e que ao faze-las, torna-se responsável por elas. É por isso que:

O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. (SARTRE, 1987, p. 7)

O conceito angústia está relacionado ao binômio: liberdade – responsabilidade. Faço as escolhas e ao fazê-las sou eu, exclusivamente eu, o único responsável por elas. É a angústia o sentimento de cada homem diante do peso de sua responsabilidade, por não ser apenas por si mesmo, mas por todas as conseqüências das escolhas feitas.

Com a angústia há um outro sentimento que é fruto também da liberdade: o desamparo. É preciso lembrar que o conceito de angústia foi desenvolvido pelo filósofo Kierkegaard e o conceito de desamparo, pelo filósofo Heidegger.

O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incômodo que Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que deve mos ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido. (SARTRE, 1987, p. 9)

O desamparo se dá pelo fato de o homem saber-se só. É por isso que Sartre diz que “(...) o homem está condenado a ser livre”. (SARTRE, 1987, p. 9) Pois não há nenhuma certeza, não há nenhuma segurança e tudo o que fizer é de sua irrestrita responsabilidade. De fato o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a “(...) inventar o homem a cada instante”. (SARTRE, 1987, p. 9)

Diante da constatação de que “(...) somos nós mesmos que escolhemos nosso ser”. (SARTRE, 1987, p. 12) Surge o outro sentimento: o desespero. O que marca o desespero é o fato de que:

 Só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre elementos prováveis. Posso contar com a vinda de um amigo. Esse amigo vem de trem ou de ônibus; sua vinda pressupõe que o ônibus chegue na hora marcada e que o trem não descarrilhará. Permaneço no reino das possibilidades; porém, trata-se de contar com os possíveis apenas na medida exata em que nossa ação comporta o conjunto desses possíveis. A partir do momento em que as possibilidades que estou considerando não estão diretamente envolvidas em minha ação, é preferível desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum desígnio poderá adequar o mundo e seus possíveis a minha vontade. [...] Não posso, porém, contar com os homens que não conheço, fundamentando-me na bondade humana ou no interesse do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem é livre e que não existe natureza humana na qual possa me apoiar. (SARTRE, 1987, p. 12)

Pelo fato de a realidade ir além, extrapolar os domínios de minha vontade e de minhas ações, o reino das possibilidades passa a evidenciar que minha ação deverá ocorrer sem qualquer esperança. O desespero é, portanto, o sentimento de que não há certezas e verdades prontas, é o sentimento de insegurança que impregna a vontade e o agir, pelo fato de ambos serem confrontados com o reino das possibilidades e apontarem para o limite a liberdade de cada indivíduo.

NATUREZA E CULTURA [parte 1]

INTRODUÇÃO
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Quando falamos em “natureza”, atualmente, pensamos logo na realidade exterior, no meio ambiente em que nascemos e vivemos, e que marcamos tão fortemente com nossa presença, nossas técnicas, esse mundo natural no qual construímos nossas cidades, que cortamos com nossas estradas, e cuja existência acreditamos estar ameaçada, por causa de nossa atitude predatória com relação a ele.
No entanto, a natureza pode ser compreendida de maneira mais ampla, ou seja, como abarcando mais do que esse “lugar” ou essa “exterioridade” que recebemos de presente quando nascemos. É muito importante percebermos que, na verdade, os termos natureza e natural referem-se àquilo que nos é dado (ou imposto), não só externa, mas também internamente, como determinações que nos definem e que não podemos alterar ou que, para serem alteradas exigem muita inventividade ou técnica.
Nessa perspectiva temos pelo menos três âmbitos do que pode ser chamado de natural: 1. A natureza exterior (os recursos naturais, o mundo tal como o encontramos, "lugar" ou "exterioridade"); 2. A natureza enquanto as características internas dos seres em geral, aquelas com as quais eles nascem (por pertencerem a uma espécie); seriam aquelas características que, juntas e articuladas, formariam o que se poderia chamar de constituição inata, que incluiria tendências, potencialidades, disposições ou estruturas tais que permitiriam (ou impediriam) o desenvolvimento de certos modos de ser. 2.1. No caso do ser humano, em geral, seu corpo (mortal, sexuado, dotado de alguns sentidos e não de outros) e suas características psíquicas, com suas potencialidades (capacidade de raciocínio, de desenvolver linguagem e de fabricar cultura); 3. Podemos ainda pensar na natureza particular de cada indivíduo (que inclui este ou aquele tamanho, marcas próprias singulares, maior ou menor aptidão para aprender alguma coisa, ser magro ou gordo, ser homem ou mulher, etc.).
Se o âmbito da natureza é fonte de determinações que não dependem de nossa vontade ou escolha, já o âmbito da cultura é, num primeiro sentido, fabricado por nós mesmos, ou seja, a cultura é tanto o processo como o resultado da ação criadora por parte dos seres humanos. Nessa primeira formulação, a cultura inclui tudo o que não é natural, ou seja, tudo o que os diferentes grupos humanos inventam, produzem, fabricam, criam, escolhem e estabelecem para si próprios.
Cultura são as cidades, as indústrias, as técnicas e os produtos das técnicas, os materiais e objetos fabricados; e também as línguas, os códigos, os livros, as leis, os costumes, a memória dos costumes, as regras, as artes, os objetos das artes, as imagens, as convenções, os comportamentos, etc.
Na verdade, a distinção entre natureza e cultura é muito difícil de ser feita, porque, como veremos, muitas dessas "produções" humanas só são possíveis por contarem com certas disposições naturais. Mas é importante pensar sobre essas dimensões da realidade, separadamente e em suas relações, para que possamos formular alguns problemas fundamentais, compreendê-los e, eventualmente, tomar decisões em nossas vidas, individuais e coletivas.
A relação entre as esferas da natureza e da cultura é uma dos temas principais da filosofia ocidental desde os gregos antigos. Tomar consciência de sua diferença e tentar compreender os modos como se relacionam são tarefas que geram uma série de questões e debates, problemas que recebem múltiplas versões e formulações ao longo da história das técnicas, das ciências, das artes e da filosofia.
Algumas coisas nos parecem certas, atualmente: não se trata de se sobrepor a cultura à natureza, como duas camadas justapostas, nem de reduzir ou assimilar uma dimensão à outra, como se a natureza se dissolvesse na cultura, ou como se fosse possível naturalizar totalmente a complexidade do mundo cultural. É preciso compreender cada uma das duas esferas, nelas mesmas e também nas suas relações. É difícil pensá-las separadamente, mas o esforço é instrutivo, ou seja, vale a pena tentar diferenciá-las através da pesquisa, da reflexão e do diálogo; mas, acima de tudo, é preciso vivenciar suas relações como problemas, para sermos capazes de vislumbrar seu alcance e sua importância para nossas vidas.
O que surge dessa experiência reflexiva é a compreensão de que o que parece estar em questão na discussão é nosso interesse em sabermos o que, afinal de contas, é o ser humano! E essa é uma tarefa que não podemos evitar: para vivermos bem (ou melhor), temos que pensar certos problemas, seja no plano instrumental (técnico e operacional), seja no plano comunicativo (moral e político).
Vejamos algumas questões que servirão para nos mostrar a importância vital da reflexão filosófica sobre a relação entre natureza e cultura.
Questões
Ecológicas - Os grupos humanos podem usufruir dos recursos naturais sem pensar nos seus limites? Um fazendeiro pode utilizar a água do rio que passa em sua propriedade, do modo como quiser? A dona de casa pode continuar lavando o passeio com a mangueira de água? De que maneiras, ao usufruirmos dos bens de consumo, estamos contribuindo para o esgotamento dos recursos naturais? De que maneiras a satisfação de nossas demandas conduzem ao aquecimento excessivo do planeta, esse lugar que é nossa residência natural?
Antropológicas - O que distingue o ser humano de outros animais? O que aproxima o ser humano de outros animais? Existe uma natureza (essência) humana? Num ser humano, é possível distinguir o que é natural do que é cultural? Num ser humano, como se relacionam fragilidade e força, precariedade e riqueza?
Culturais - Como explicar a diversidade das línguas e das culturas? Como explicar que os seres humanos, geneticamente os mesmos, se adaptem a circunstâncias naturais tão distintas e adversas, como o deserto e a floresta tropical? Existem culturas inferiores ou superiores, umas às outras?
Pedagógicas - É possível mudar o comportamento de alguém que tem tendências agressivas? Uma criança pode ser obrigada a aprender a jogar futebol? Uma menina tem que, necessariamente, gostar de ser mãe? Um menino que se torna pai deve ser obrigado a sustentar seu filho? A sexualidade é uma orientação natural a ser aceita ou uma escolha?
Éticas - Enquanto determinado por fatores naturais (sexo, cor da pele, força física, altura, etc.) um indivíduo deve ter certas funções sociais previamente estabelecidas? Alguém pode ser valorizado ou desvalorizado por ser indígena, oriental ou negro? Alguém pode ser prejudicado por ter menos força física?
Jurídicas - As leis devem ser aplicadas a todos os indivíduos igualmente, sem levar em conta as diferenças dos ambientes naturais em que vivem? Os indivíduos devem ser julgados sem se levar em conta as particularidades culturais nas quais foram educados?
OS ANTIGOS
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As primeiras formulações
A concepção antiga de "natureza" (phýsis para os gregos, natura para os latinos) remete à vida como processo e sua manifestação, ao fato de se estar vivo e em permanente transformação, ou seja, ao fato de os seres nascerem, crescerem e morrerem. A noção geral de natureza inclui tanto o processo (de transformação) como o resultado (algo que permanece), sendo que o termo grego enfatiza a dimensão vegetal (uma planta que brota) e o termo latino, a dimensão animal (um homem que nasce). E ainda, podemos falar seja da natureza como o conjunto dos seres, o todo, seja da natureza de um ser em particular, indicando com isso o modo de ser próprio de uma coisa. Resumindo, a natureza pode ser pensada, então, como o todo (o universo) ou a parte (um ser), e sob os aspectos dinâmico (processo) e estático (constituição ou essência).
Num sentido amplo, os gregos antigos não opunham radicalmente natureza e cultura; em geral, incluíam na phýsis tudo o que, hoje, compreendemos como o “universo”, mesmo as cidades, os seres humanos e as coisas que produzem. Mas se formos considerar cada autor ou pensador separadamente, no detalhe, encontraremos uma pluralidade de concepções. Veremos aqui apenas algumas delas.
Os primeiros filósofos são filósofos da natureza (ditos físicos ou fisiólogos), e buscam reconhecer no universo o princípio de todas as coisas, a partir do qual se reconhece uma justiça cósmica, um poder que regule as mudanças e diferenças, na ordem do tempo, conferindo-lhes medida e equilíbrio. Anaximandro de Mileto e Parmênides de Eléia foram dois desses primeiros pesquisadores que pensavam que há uma justiça divina que garante a ordem do cosmo ou da natureza.
Dica - Sobre esses filósofos gregos veja, na Bibliografia, o volume Os pré-socráticos, da coleção Os Pensadores.
Os sofistas
Aos poucos, os filósofos começam a perceber que as leis e costumes humanos são realidades diferente da totalidade natural, passando a opor a lei humana (nómos), a comunidade política, as coisas instituídas ou fabricadas à natureza (phýsis). Só que essa nova modalidade de lei será objeto de permanente conflito. A lei dos homens perante a natureza será, então, a primeira versão daquilo a que hoje nos referimos como a oposição entre natureza e cultura.
O mito de Prometeu é o mito grego que primeiro situa o ser humano como constituído pelo cruzamento entre as dimensões natural e cultural. Conhecemos pelos menos três versões desse relato mítico: uma arcaica, do poeta Hesíodo, outra trágica, do poeta Ésquilo e uma filosófica, do sofista Protágoras de Abdera, transmitida por Platão.
Dica – Veja um resumo do mito de Prometeu e outras idéias relacionadas, nas Orientações Pedagógicas e nos Roteiros de Atividades – Natureza e cultura. Página do Centro de Referência Virtual do Professor.
De modo sintético, de acordo com a versão de Protágoras de Abdera (séc. V a.C.), podemos dizer que o ser humano, tal como é pensado pelo racionalismo dos sofistas, é, por natureza, um ser mortal, sexuado e desprovido de recurss, e que terá que providenciar soluções culturais se quiser sobreviver. Frágil, nu e esquecido dos deuses, sua pobreza (natureza) é sua riqueza (cultura); para enfrentar a finitude e a incompletude, tem que, antes de tudo, tomar consciência de sua precariedade. Segundo esta versão do mito, a humanidade só se institui, de fato, na natureza, mas não naturalmente; quer dizer, o ser humano não se torna "naturalmente" o que é ou o que pode ser; ele só se torna propriamente humano, culturalmente. Ele tem que fabricar seus próprios recursos técnicos e simbólicos, tem que aprender a trabalhar, a amar e a morrer; tem que buscar uma significação para a morte, aprender a direcionar o impulso sexual e a desenvolver o trabalho, as técnicas e a vida política organizada (cultura).
Essa primeira diferenciação entre lei (no sentido amplo dos primeiros filósofos) e natureza propicia, na cultura grega, discussões fundamentais para todos nós, como a diferença ou igualdade entre os seres humanos, a origem da linguagem e a necessidade da educação.
"Agimos como bárbaros uns em relação aos outros, enquanto, por natureza, todos, em tudo, nascemos igualmente dispostos para sermos tanto bárbaros, quanto gregos. É o caso de se observar as coisas que, por natureza, são necessárias a todos os homens: a todos são acessíveis pelas mesmas capacidades, e em todas essas coisas nenhum de nós é determinado nem como bárbaro, nem como grego. Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas."
Antifonte, Papiro Oxyrhynchus, fragmento DKB44.
"Considero que a primeira das realizações que se dão entre os homens é a educação; pois, se o princípio de uma realização é produzido retamente, é verossímil que, retamente, há de acontecer o fim; pois, quando se introduz a semente na terra, é preciso esperar pelo desabrochar; e quando se planta a nobre educação no corpo novo, desse modo ele vive e floresce durante toda a vida, e nem a chuva, nem a seca o impedem."
Antifonte, citado por Estobeu, fragmento DKB60.
A lei do mais forte
Uma passagem do historiador Tucídides (séc. V a.C.) mostra claramente o alcance político do problema da relação entre natureza e cultura, no diálogo, reconstituído por ele, entre os cidadãos de Atenas e a população da ilha de Melos, que se rebelava contra o imperialismo ateniense.
"Atenienses - Segundo a opinião, acreditamos que os deuses e, sabemos claramente, que os homens, de acordo com a necessidade da natureza, dominam pela força. Não estabelecemos esta lei, nem fomos os primeiros a usá-la, mas a utilizaremos e a deixaremos para a posteridade, para sempre, sabendo que vós e outros fariam o mesmo se pudessem."
TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso V, 105.
Leia também este trecho do diálogo Górgias de Platão,
"Górgias - Penso que a própria natureza mostra que a justiça consiste em o melhor ter mais que o pior, e o mais forte mais que o menos forte. É assim em todo lugar, é o que a natureza ensina, em todas as espécies animais, em todas as raças humanas e em todas as cidades. Se o mais forte domina o menos forte e se ele lhe é superior, isso é um sinal de que é justo."
Platão. Górgias 483C-D
Na primeira passagem, vemos a inversão da associação entre natureza e justiça, explorada pelos filósofos da natureza. Os atenienses se apóiam numa suposta força necessária ou lei da natureza para justificar seu poder e sua dominação dos mais fracos. Na segunda, o personagem Cálicles sustenta que a justiça é que o forte domine o fraco; ele pensa que a justiça de acordo com a lei instituída é uma arma dos fracos para se defenderem dos fortes; os fortes devem impor-lhes a lei da natureza.
Platão – a natureza inteligível
Nos seus diálogos, Platão (428-347 a.C.) empreende um amplo debate com sofistas e poetas, que eram os educadores de sua época. Na sua obra, todas as questões relativas ao ser humano são pautadas pela oposição entre natureza e cultura: a educação, a melhor constituição para a cidade, a linguagem, as relações entre homens e mulheres, as relações entre gregos e bárbaros, etc., sempre remetendo a uma lei da natureza que traduziria uma justiça cósmica.
No Górgias, ainda, Sócrates se opõe a Cálicles, nos seguintes termos:
"Sócrates - Alguns sábios dizem, Cálicles, que o céu, a terra, os deuses e os homens, formam juntos uma comunidade, que são ligados pela amizade, pelo amor da ordem, o respeito da temperança e o senso da justiça. É por isso, companheiro, que chamam o todo (do mundo) de "cosmo" ou ordem do mundo, e não desordem ou desregramento. Mas tu, apesar de ser sábio, não me pareces dar muita atenção a esse tipo de coisas; ao contrário, não percebes que a igualdade geométrica tem muito poder, tanto entre os deuses, como entre os homens, mas pensas que cada um deve buscar ter mais do que os outros, e, na verdade, não cuidas da geometria."
Platão, Górgias 507e-508A.
O que Sócrates quer dizer é que, ao estudar a geometria, junto com a cosmologia, descobrimos que existe uma ordenação inteligível no universo, que as atitudes do homem individual devem levar em conta o fato de ele ser parte integrante desse universo maior, que é a natureza física. Vista desse jeito, a geometria serviria para que Cálicles encontrasse uma medida para a ambição desenfreada, na direção da temperança e da justiça.
No diálogo Timeu, escrito por Platão no fim da vida, o personagem principal propõe que um deus artesão produziu a totalidade da natureza, segundo modelos inteligíveis (as ideias ou formas), a partir de um material sem forma. A cosmologia (teoria do universo) platônica apresentada nesse diálogo, de fato, nos leva a pensar que o universo é imperfeito, porque os seres são vistos como imagens de modelos perfeitos, ou seja, não coincidem com eles; mas, por outro lado, fica claro também que este é o melhor mundo possível, porque a natureza é modelada segundo o máximo de racionalidade que o material utilizado comporta. O universo físico é, portanto, impregnado de racionalidade, determinado por formas que o delimitam e que também indicam suas possibilidades; o cosmo é povoado por seres que nascem, crescem e morrem, recebendo e tendo como parâmetro, mas também perdendo, ao longo de sua existência, as determinações inteligíveis que fazem com que sejam o que são. Neste universo está incluída a cidade-Estado (pólis), ou seja, os seres humanos e sua cultura, com sua vida e sua morte.
Na República, Sócrates propõe uma educação para os governantes, que começa com música e ginástica, passa pelas matemáticas e culmina com a filosofia ou dialética, ciência que tem como objeto último as formas inteligíveis:
"Sócrates - (...) com relação aos jovens de vinte anos e aos ensinamentos que, na sua educação quando crianças, lhes havíamos apresentado de maneira superficial, será preciso reuni-los de modo a lhes dar uma visão de conjunto do parentesco dos ensinamentos uns com os outros e com a natureza do ser."
PLATÃO. República VII 537C.
"Sócrates - (os dirigentes desenhariam o esquema da constituição da cidade (...) em seguida, creio, para completar sua obra, eles olhariam muitas vezes para um lado e para o outro, seja na direção daquilo que é, por natureza, justo, belo e temperante e tudo mais, seja na direção daquilo que produziriam entre os homens (...)."
PLATÃO. República VI 501B.

"Sócrates - Não há, meu amigo, nenhuma ocupação daqueles que administram uma cidade que seja própria de uma mulher, porque ela é mulher, nem de um homem porque ele é um homem; mas as naturezas são igualmente distribuídas entre as duas ordens de seres vivos; a mulher participa de todas as ocupações, e istoconforme a natureza, e o homem também de todas, mesmo que, em todas, a mulher seja mais fraca que o homem."
Platão. República V 455D-E.
Essa posição de Sócrates sugere que Platão está pensando numa natureza humana compreendida como essência inteligível, algo que unifica a compreensão da espécie, mas que mantém a diversidade das determinações biológicas dos sexos. Politicamente, as mulheres devem ser incluídas no processo de formação, para se tornarem guardiãs (com formação militar), filósofas (com formação intelectual), e, eventualmente, governantes. Essa proposta torna possível pensar a diferença na semelhança, ou a multiplicidade (natureza física) na unidade (natureza inteligível).
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Os cínicos - viver segundo a natureza
Finalmente, vejamos rapidamente algumas das propostas dos filósofos chamados "cínicos" que propunham que devemos todos "viver segundo a natureza". Foram filósofos do período chamado helenístico, conhecidos por assumir a filosofia como modo de vida radical; sua marca é a transgressão das regras estabelecidas (culturais) em nome da valorização de uma suposta vida "natural". A própria palavra "cínico" vem do termo grego para "cão", sugerindo que viver com sabedoria é viver como um animal. Desses filósofos chegaram-nos apenas fragmentos de textos ou relatos indiretos de episódios vividos por eles.
Diógenes de Sinope (que morreu por volta de 325 a.C.) pensava que os seres humanos têm sempre à sua disposição os meios fáceis para viver, só que esses estão ocultos; para conhecê-los é preciso seguir as exigências da natureza.
"Interrogado sobre qual seria a coisa mais bela entre os homens disse: a liberdade da palavra". (...) "Costumava fazer qualquer coisa à luz do sol, mesmo o que diz respeito a Demeter e Afrodite" (comer e amar). (...) "Se comer não é estranho, nem mesmo na praça pública é estranho. Não é estranho comer; portanto, também não é estranho comer na praça pública". (...)"Costumava masturbar-se em público e dizia: quem me dera pudesse aplacar a fome, esfregando-me o ventre." Diógenes Laércio VI, 69 (as traduções são de M. G. Kuri e Olimar F. Jr).
"A alguém que pretendia que viver é um mal, ele respondeu: não viver, mas viver mal". DL VI, 55.
"Ele tinha escrito a alguém para lhe encontrar uma pequena casa: como esse demorou a fazê-lo, Diógenes estabeleceu sua residência em um barril, perto do Metroon (...)". DL, VI 23
"Durante uma refeição, alguns jogavam-lhe os ossos como a um cão. Diógenes, retirando-se, urinou sobre eles, como um cão." DL VI,46.
"Certa vez, alguém o introduziu numa casa suntuosa e o proibiu de cuspir. Diógenes então pigarreou profundamente e cuspiu-lhe no rosto, dizendo não ter encontrado um lugar pior." DL VI, 32.
"Alguém perguntou a Diógenes qual era o tempo propício para se casar: "Para um jovem, disse ele, é cedo demais, para um velho, tarde demais." DL VI, 54.
"Segundo afirma Teofrasto no Megárico, foi observando um camundongo correndo de um lado para o outro, sem buscar um lugar de repouso, sem se preocupar com a escuridão, nem desejar nenhum dos reputados prazeres, que Diógenes encontrou uma saída para suas dificuldades. Ele foi o primeiro, segundo alguns, a dobrar o seu manto em dois porque precisava dele também para dormir; arranjou uma sacola, onde punha seu alimento, e se servia de todo lugar para todas as coisas, para comer, dormir e conversar (...)". DL VI, 22.
"Nada, dizia ele, absolutamente nada, pode ser realizado corretamente na vida sem ascese (exercício), que é capaz de tudo vencer. Assim, os homens que deviam escolher, contra os esforços inúteis, os que são conforme à natureza, para viverem com felicidade, sofrem na estupidez. (...) Falava e demonstrava essas coisas fazendo, falsificando realmente a moeda, sem conceder o mesmo valor às coisas segundo a lei, do que àquelas segundo a natureza." DL VI, 71.
OS MODERNOS - NATUREZA X CULTURA
A natureza como valor
Viver segundo a natureza?
No século XVIII, essa mesma questão evoca as reflexões do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo Rousseau, o cultivo da humanidade do homem se dá contra a natureza; paradoxalmente é o próprio fato de que o homem é um animal educável (cultivável) que faz com que ele possa ir contra sua natureza. Ele é crítico dos rumos que a sociedade de sua época e a civilização tomaram: a busca vã das ciências, o luxo das letras e das artes, a dissolução moral, toda uma lista de vícios que são vistos como marcas dos excessos da cultura que distancia o homem de sua natureza original.
É a partir dessa visão crítica que a natureza é pensada como a norma pela qual se julga a sociedade e que deve servir de parâmetro para uma eventual redescoberta da constituição humana; apesar da degeneração cultural, a natureza no ser humano permanece de algum modo, como núcleo a ser recuperado.
"Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles."
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Introdução, p.235.
"De que se trata, pois, precisamente, neste discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real."
ROUSSEAU. Discurso sobre a origem... Introdução, p.236.
A proposta de Rousseau não é voltar no tempo (cronologicamente) para reencontrar um impossível homem natural puro, mas buscar "reflexivamente" (logicamente) o ser humano tal como ele seria, sem o suposto "progresso" das culturas; a civilização deformou a natureza do homem, distorcendo-a e transformando-o em um ser animalesco. O curioso é que isso aconteceu, segundo o filósofo francês, como que através de uma inversão: é a própria natureza do homem, ou seja, sua capacidade de transformar-se, de aperfeiçoar-se (que Rousseau chama de perfectibilidade) que permite que ele se volte contra a natureza; a civilização faria um uso anti-natural da perfectibilidade natural dos homens. Mas, apesar de tudo, sob as alterações que sofreu, no fundo, permanece a natureza humana.
É pela reflexão que poderíamos distinguir o natural do cultural (artificial); Rousseau não propõe um abandono da cultura ou um retorno puro e simples à natureza; ele quer refletir criticamente sobre a sociedade, pensando filosoficamente a passagem de um estado a outro.

"Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil."
ROUSSEAU. Discurso sobre a origem... Introdução, p.23.
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"O mais forte não é nunca forte o suficiente para ser sempre o mestre, se ele não transformar sua força em direito e a obediência em dever. É daí que vem o direito do mais forte; direito considerado ironicamente na aparência e realmente estabelecido em princípio. Mas será que essa palavra nunca será explicada? A força é uma potência física; não vejo, de modo algum, que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade; é, além do mais, um ato de prudência. Em que sentido poderia ser um dever? (...) Ora, que direito é esse que termina quando acaba a força? Se for preciso obedecer pela força, não é preciso obedecer por dever; e se não se é forçado a obedecer, não se tem mais obrigação. Vemos, então, que essa palavra de direito não acrescenta nada à força; não significa nada (...) Convenhamos, então, que a força não faz o direito e que só devemos obedecer às potências legítimas."
ROUSSEAU. Do contrato social. Livro I, cap. III.
A cultura como valor
Para outros pensadores modernos, a grande referência para se pensar o homem é a cultura, não a natureza. Assim, o ser humano seria fundamentalmente um ser sem natureza, um ser aberto e plástico a ser moldado pela cultura. Para muitos, a cultura ou os costumes são pensados em franca oposição à natureza.
Segundo Montaigne (1533-1592), por exemplo, os costumes têm o poder de nos fazer aceitar como naturais ou racionais os atos mais diversos e contraditórios: ele vai do incesto às mutilações ou roupas ridículas (Ensaios I, 23), tudo pode passar a ser considerado como "natural". O costume, reforçado pelo hábito, é a base imprescindível da vida em comunidade; tudo pode ser aprendido, aceito ou modificado e rejeitado.
"Aqui se vive de carne humana; lá é dever de piedade matar o pai em uma certa idade; alhures os pais determinam, das crianças ainda no ventre das mães, quais eles querem que sejam conservadas e criadas e quais querem que sejam abandonadas e mortas; alhures os maridos velhos emprestam as mulheres aos jovens para que se sirvam delas (...). Além disso, o costume não fez uma república só de mulheres? Não lhes colocou armas nas mãos? (...) em que crianças de sete anos suportavam ser açoitadas até a morte, sem mudar de expressão? (...) Em suma, na minha opinião não há coisa alguma que ele (o costume) não faça ou não possa; e, com razão, Píndaro, pelo que me disseram, chama-o de rei e imperador do mundo (nómos basileus). (...) Na verdade, porque ingerimos o costume com o leite do nosso nascimento (...) parece que nascemos para seguir este procedimento".
MONTAIGNE. Ensaios I, 23.
No século XVIII, a partir da obra do filósofo alemão Kant (1724-1804), a corrente conhecida como o "idealismo alemão", uma filosofia dita "crítica" e "racionalista", começa a operar com a distinção entre "natureza" e "razão" que, de algum modo se sobrepõe à diferenciação entre natureza e cultura. Para essa corrente filosófica, a natureza constitui o âmbito dos fenômenos, ou seja, manifestações ou eventos sensíveis regidos por leis mecânicas. Do ponto de vista da racionalidade prática, ou seja, das razões próprias às ações humanas, o indivíduo que se deixa dominar pela natureza é aquele que fica preso no plano das necessidades, do prazer e da dor físicos, e que, assim, fica sujeito ao que Kant chama de "heteronomia" (a lei do outro, ou seja, quando alguém obedece a algo que não vem propriamente de dentro dele, mas de fora). O indivíduo "autônomo" (que tem sua lei própria) torna-se independente dos instintos; seria aquele cuja vontade segue a razão, segundo leis universais.
"É por preguiça e covardia que uma grande parte dos homens, depois que a natureza os libertou da direção alheia, permanece de bom grado durante toda a vida como menor de idade. E são essas mesmas causas que facilitam aos outros se tornarem tutores deles. É tão cômodo ser menor! Se um livro me empresta sua inteligência, se um padre substitui a minha consciência, se um médico julga da minha dieta, etc., não preciso mais preocupar-me por mim mesmo. (...) É, pois, difícil para cada homem em particular conseguir livrar-se desta menoridade tornada quase uma natureza. Ele chega até a amá-la e se sente realmente incapaz de servir-se de sua própria razão, porque nunca lhe deixaram fazer essa tentativa. Os regulamentos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de um uso, ou antes abuso, racional de seus dons naturais são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se desprendesse apenas daria um salto inseguro sobre um pequeno fosso, porque não está acostumado a tais movimentos livres. Por isso, são poucos os que, com o próprio esforço de seu espírito, conseguem sair da menoridade e empreender o caminho seguro."
KANT. O que é esclarecimento. Trad. F. Javier Herrero.
Assim, a cultura é pensada como pertencendo ao âmbito da liberdade e da razão, que deve dominar a natureza; é o reino dos fins, do dever-ser, por oposição à natureza, da superação do que é simplesmente "dado naturalmente". O desenvolvimento da razão seria a realização da finalidade última do ser humano, sendo superior à busca do prazer, que se restringe à natureza e aos instintos. Na verdade, nos pensadores que se seguem a Kant, como Hegel, a cultura é vista como a finalidade última da natureza humana, permitindo que ultrapassemos as necessidades e exigências corpóreas e materiais.
É assim que a "cultura" (racional e com pretensões universais) é proposta como um valor máximo ou uma norma a ser seguida pelos seres humanos. É apenas na medida em que o humano liberta-se do natural que ele consegue conquistar sua humanidade, que é da ordem do cultural-racional.
Essas posições racionalistas marcam de modo decisivo a civilização européia ocidental com uma dualidade de valores e de atitudes, que nos faz priorizar a dimensão cultural em detrimento de tudo o que é natural.
Só que, ao tentar assimilar a dimensão natural à dimensão cultural e dissolver uma na outra, a cultura pensada enquanto norma passa a ter características naturais: a estabilidade e a fixidez de certas tradições, por exemplo, ou as visões religiosas fundamentalistas. Os costumes e hábitos, em princípio, adquiridos pela educação, ou seja, no âmbito da cultura, ao serem inculcados e fixados, tornam-se uma segunda "natureza", na medida em que adquirem regularidade. A repetição mecânica dos atos, supostamente "livres e racionais", faz com que tendam a perder o sentido, tornado-se forma sem conteúdo. Nessa medida, curiosamente, a cultura se transforma numa natureza fabricada, adquirida, regida por leis mecânicas.
Portanto, na medida em que valorizamos excessivamente a dimensão cultural do ser humano, tornamo-nos cegos à legitimidade das demandas da esfera da natureza; é assim que as normas culturais podem se tornar excessivamente rígidas e inflexíveis, tendendo, paradoxalmente, a uma espécie de "naturalização".

Um comentário:

  1. Professor não consegui encontrar o texto, confirma por favor o titulo. Atitudes Filosóficas?

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